“Dormia a nossa pátria mãe tão distraída
sem perceber que era subtraída
Em tenebrosas transações
Seus filhos erravam cegos pelo continente,
levavam pedras feito penitentes
Erguendo estranhas catedrais
E um dia, afinal, tinham o direito a uma alegria fugaz
Uma ofegante epidemia que se chamava carnaval,
o carnaval, o carnaval...”
(“Vai passar" – Chico Buarque)
Fosse mulher, fosse alegoria,
Do samba, da vida...
Esquelética, desdentada, mal nutrida,
Feito as esperanças e ilusões de seu povo
Festeiro e ignorante
Sucumbiu ao samba, à orgia
Manchou de sangue o solado das plataformas,
Nas quais a muito custo é que se equilibrava,
Bradou enlouquecida os versos do samba de sua escola,
Mesmo que estes não fizessem nenhum sentido
Brilhou feito estrela em dia de céu claro
Acenou pras autoridades
Distribui beijos à multidão eufórica, democraticamente,
Chorou, nitidamente emocionada, ao primeiro batuque da bateria,
Riu-se gargalhadas ao vislumbrar a primeira câmera
Olhando languidamente sua lente redentora,
Como quem olha pra um amor distante,
Sambou,
Percorreu graciosamente toda a extensão da avenida,
Exauriu-se no ritmo frenético-alucinado dos tamborins
Já era manhã, quando olhou pro céu,
Que se abria diante de si, claro, nítido,
O sol parecia vir afrontar-lhe com seu brilho majestoso,
E ela exausta, deusa marginal, mulher devassa,
Viu seu espetáculo findar-se,
E foi com pesar que o viu,
O clarão de um novo dia trazia consigo a realidade,
Que vinha à tona sufocante, trazendo em seus raios
Todas as mazelas de que ela se compõe,
Trazendo à memória da então, deusa, sua condição inicial e verdadeira
Com o sol veio a luminosidade necessária à visão
E ela, exausta, dolorida,
Desfeita da fantasia,
Voltou a ser Maria,
Feito a Cinderela ao soar das doze badaladas,
Com a infeliz e pontual diferença da ausência do príncipe,
Da educação, da saúde, da moradia, do respeito...
Maria, longe dos brilhos falsos dos paetês,
Há léguas do prestígio da avenida,
Voltou a ser a Maria dos muitos filhos,
Dos dois empregos miseráveis,
Da casa por terminar,
Da humilhação da fila de espera nos postos de saúde,
Da sobrevida.
Logo ela que, na noite anterior ostentara tanto luxo,
Voltara a ser apenas mais uma no lixo
Dessa sociedade baixa, nojenta, burra,
Que se auto-engana com ilusões e alegorias malditas,
Entregando-se à farra da miséria,
Da consagração ao anonimato estatístico da fome.
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