terça-feira, 22 de abril de 2008

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Minha poesia nasce da minha doentia mania de observar,
E ainda que arrancasse os olhos, feito Édipo,
Me restariam os outros sentidos,
E aguçados que estariam pela falta da visão,
Me mostrariam com maior exatidão
O que me nego a constatar...

Os mendigos feririam minhas narinas com seu odor pútrido,
De quem ainda em vida veste mortalhas.
E seu clamor atingiria meus ouvidos, tão profundamente,
Que seu eco me acompanharia ao longo de semanas inteiras.

Minhas mãos os tocariam,
Quando do ofertar de umas míseras moedas,
E sua aspereza seria sentida pelo meu tato,
Assim como cada um de seus calos e marcas,
E grossas veias nos velhos de pele muito fina.

Meus lábios provariam, sem nenhum pudor,
Do azedume de sua refeição,
Colhida no lixo...

Eu não tenho poder nenhum sobre minha poesia,
Meus olhos me atraicionam,
Dirigindo meus olhares pros guetos,
Onde residem as mazelas,
Pros meninos esfaimados,
Pras meninas adulteradas e prostituídas,
Pra toda sorte de injustiça e dor...

E chego mesmo a invejar os distraídos,
Que passam e nada notam.
Eles não sofrem do meu desassossego,
Nem sequer imaginam o porquê de minha constante agonia.

Mas, em contrapartida,
Essa mesma ausência de visão,
É quem os priva de ver,
Tal como faço,
As flores que nascem silenciosas, na aspereza do asfalto,
Diariamente,
Em meio aos carros, sempre apressados,
Erguendo-se até a altura de suas janelas...

Só as moças mais sensíveis as vêem, colhem,
E com elas, enfeitam os cabelos,
Enquanto dirigem olhares insinuantes aos namorados,
Que, envolvidos pelo trânsito,
Nem as notam.

domingo, 20 de abril de 2008

Fogos e artifícios

Nesta cidade de fogos e artifícios,

Sem cinema,

O filme é sempre o mesmo,

Com o mesmo enredo insosso e repetitivo,

De um povo entorpecido,

Pelo muito circo e pouco pão.


E me enoja essa ansiedade toda

Por comemorar não sei o quê.

Festejar o quê?

Espera-se um ano todo,

Para confirmarmos nossa tendência à alienação.


E com que ânimo a confessamos,

A ponto de ser impensável sua inexistência,

Movidos que somos à distração...


Ânimo este que não se revela em outras situações,

Não, com essa intensidade toda,

Situações,que por graves e urgentes,

Demandariam todo nosso esforço coletivo.


E nada muda,

Até mesmo a crítica não muda de ares,

E ainda assim permanece válida e atual,

Validada pelo estado sempre imutável das coisas.


As coisas não vão bem...

Isso não importa,

Há uma festa lá fora,

Há multidões de risos e falso contentamento,

Há fogos e artifícios,

Há esquecimento e torpor,

Nessas luzes efêmeras.


Mas há também,

O fim de tudo,

O fim do esquecimento,

Que chega com o fim da festa,

Trazendo consigo o dilema de José:

- E agora?


sábado, 19 de abril de 2008

EU


Sou capaz de entrar e sair, sem que me notem,
Falo pouco, e categoricamente,
Não me ajusto, contrario e sinto prazer nisso.

Conservo a timidez dos fortes,
A inércia dos covardes,
E minhas palavras são sempre muito melhores que eu.

Olho sempre nos olhos,
E repudio quem se intimida com isso,
Porque sim, há quem se intimide...

Eu sou mesmo assim,
Os outros é que erram,
E me idealizam, esperando de mim,
Tudo em demasia.

Eu não espero,
Não tenho paciência nem mesmo pra planos,
E sigo sem rumo,
Porque possuo a íntima certeza,
De que é sem rumo,
Que se chega aos destinos mais certeiros.

domingo, 13 de abril de 2008

Os quatro elementos


Fosse a vida um manancial,
Bebe-la-ia toda num gole só,
Feito louco sedento diante de um copo d'água.

Fosse ela chama,
Me deixaria consumir por ela, lentamente,
Feito borracha teimosa.

Fosse ela terra,
A distribuiria entre os miseráveis,
Feito latifúndio tomado à força,
Me contentando com o amplo espaço de sete palmos.

Fosse ela ar,
Me volatizaria, misturando-me a ela,
E feito gás carbônico,
Castigaria as narinas da humanidade,
Com meu perfume hostil.

domingo, 6 de abril de 2008

CHE


Ele já morreu?
Não. Suponho que não.
Mesmo? Tem certeza?
É só ver. Suas pupilas não estão dilatadas ainda.
E a respiração?
Está leve.
Quando ele vai morrer?
Posso eliminá-lo, senhor?
Breve.
Não fique assim, não, eu lhe asseguro que vai morrer.
Certo, estou mais calmo, aliás, o que ele fez?
Ele?
Sim.
Ele nasceu, teve infância, um lar, pai e mãe
Alguns irmãos.
Depois?
Cresceu, comprou roupas e uma moto com o suor do seu rosto,
teve dois trabalhos.
Depois?
Leu alguns livros, se interessou por uma garota.
Depois?
Pensou ter visto a liberdade numa esquina da cidade.
Depois?
Aprendeu apesar de tudo
que nos corpos ainda resta alguma liberdade
sem esquinas e sem cidades.
Palavra perigosa esta.
Concordo, muito perigosa.
Olha, parece que resiste.
É necessário que ele morra.
Sim.
Está na hora.
E mal lhe eprguntando,
qual foi seu último pedido?
Fazer uma poesia.
Que desperdício de pedido, poesia,
merece morrer mesmo.
Concordo plenamente.
Tem ela aí?
Queimei-a com suas roupas e pertences.
Você é muito competente.
Obrigado, senhor, bondade sua.
Olha, passa da hora, mate-o!
Posso?
À vontade.

Pronto.

E o corpo?
Enterre-o no jardim de casa
Minha mulher sempre reclamou da falta de adubo das hortências.

Nestor Lampros.




terça-feira, 1 de abril de 2008

"Eu acredito que a poesia tenha sido uma vocação, embora não tenha sido uma vocação desenvolvida conscientemente ou intencionalmente. Minha motivação foi esta: tentar resolver, através de versos, problemas existenciais internos. São problemas de angústia, incompreensão e inadaptação ao mundo."
(Carlos Drummond de Andrade)