quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

NOITE DE NATAL


Era noite de Natal, e eu pensava em escrever algo breve e impactante, um poema comovente, arrebatador.

Sozinha em meu quarto, a janela entreaberta, dezembro calorento, eu pensava, pensava, e contudo as palavras todas pareciam arredias ao meu convite...

Na casa ao lado, os vizinhos comemoravam o nascimento de Cristo brigando com o cachorro, aos gritos, só superados pelo volume histérico e indecente da “música” que ouviam.

Em minha mente, soava grave e passional: “Adete fideles”... E toda aquela atmosfera esquizofrênica ao lado, me levava a refletir sobre esta noite especial.

“Você não vai tomar cerveja?”; “Bebo sem me prejudicar...”; “Você que falou que quer ver eu ruim..” Esse diálogo, vez por outra, desviava minha atenção. Mas havia a necessidade de concentrar-me em meu intento: Escrever sobre o Natal.

Mas que ritmo ou esquema de rimas resistiria àquela barulheira desordenada, a que atualmente convencionou-se chamar música?

Não escrevi nada, contudo, tenho ainda um poema todo estruturado em minha mente, lindo, passional, tal como havia idealizado e descrito nas primeiras linhas desse desatino literário natalino.

Curiosamente, ele não se fez escrever com palavras. Cada verso seu, arrebatador, é uma imagem. Cada verso, uma pessoa.

Confesso que ele não é longo, pois detive-me a esquadrinhar somente as realmente relevantes. E como elas se encaixam, rimando umas com as outras, nas tramas de meu poema-vida...

E de quanta ternura foi que se fez esse poema, porque de cada um dos rostos que me são caros, retirei apenas sorrisos, sugando o que de melhor havia de seus donos, só...

E fiquei só, mesmo com o esplendor desse poema personificado... Só e pensativa... Feliz e triste, saudosa por aquilo que não foi...

Só, falei com Deus. (Me encanta a idéia de dividir com Ele tudo aquilo que já sabe de antemão).

Só, pensei ainda mais um pouco... E adormeci, apesar da persistência da poluição sonora ao lado, apesar de todos os meus medos, da rua, que insistia com seus barulhos e toda sua gente que desconhece o verdadeiro significado dessa data...

Adormeci em paz, na paz de que deveria estar gozando o amado aniversariante, há milênios, numa fétida estrebaria, em Belém.

sábado, 20 de dezembro de 2008

***CELEBRAÇÃO***

Celebremos!

Celebremos
O Natal dos miseráveis,
O mais significante de todos,
Por semelhante ao primeiro.

Eles que revestem o corpo esquelético com trapos,
Eles, para quem não há lugar que lhes seja digno ou confortável
Dentro desta sociedade regida pelo mal.

Pequenos, insignificantes, aos olhos da grande massa ensoberbecida ...

Não esperam presentes,
Nem tão pouco, fartura à mesa.

Apenas assistem moribundos a este espetáculo capitalista,
Em que se transformou a suposta comemoração ao nascimento de Cristo.

Não, eles não esperam pela lenda ridícula,
Travestida de barba e vermelho,
Mas aguardam ansiosamente pelo menino,
Que já contorse em dores a mãe maltrapilha,
O corpo retorcido sobre jornais,
Velado por cães e pelo pai.

E pelo Pai...

Sob um céu estrelado,
Anunciando Vida e Salvação!

terça-feira, 18 de novembro de 2008

VISÃO

Cavalgar o corcel dos sonhos,
Alucinado, alucinadamente,
Rompendo as noites escuras,
Convertendo-as com pisadas rijas...
Em manhãs mais tenras e luminosas.

Se não, de que vale a vida?
Esse vale de ossos secos..
Apenas ser cumprida,
Feito protocolo nos becos?

CANTAR...

Cantar...
Nessa vida meticulosa, medíocre, mísera,
Nós que comemos o pão da nossa desgraça
Cantar...
Quando as dores se avolumam por demais
Cantar...
Como quando ninguém vê
E alma estravaza,
Longe da censura de muito solhos,
E o canto, liberto
Faz-se o mais afinado de todos
E as cordas da alma formam acordes perfeitos.
Eles acordam os mortos,
Avolumam-se em cadeias,
Libertando os cativos,
E altivos,
Chegam ao coração de Deus.

sábado, 15 de novembro de 2008

CANSAÇO



Ando mesmo muito cansada
Um cansaço de dores e frustrações
De melancolia e nenhuma saudade daquilo que não foi

Saudade sim do tempo em que sorria
Um sorriso desdentado...
Tempo em que nenhuma aflição me atingia

Eu não tinha certezas
Nem o medo de que elas desmoronassem...

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

REFLEXÕES SUBVERSIVAS


“Não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, perfeita e agradável vontade de Deus”.

(Romanos 12:2)


Escandalizo a muitos, quando me auto-intitulo assim SUBVERSIVA, mas o faço de forma consciente e absolutamente segura quanto ao significado deste vocábulo.

E por isso, apenas por isso, afirmo categoricamente ser o cristão autêntico, um subversivo, uma vez que ele não compactua com os valores e práticas correntes, mas antes, trava contra os mesmos, verdadeira luta. Ao menos deveria ser assim. Mirando-se no exemplo do próprio Cristo, filho do Deus Altíssimo, e por que não acrescentar-lhe esse título “maior subversivo da História”, deveríamos, os que ainda ostentamos o nome de cristãos, imitá-lo, de forma a não nos confundirmos com os deste mundo.

Paulo é enfático, ao utilizar-se do modo imperativo, quando se dirigindo aos romanos, no trecho transcrito acima, e sua ordem/recomendação resume em si mesma a postura que deve assumir todo cristão genuíno. Postura de subversão, pasmem!

“Não vos conformeis com este século...”

Em outras mais símplices palavras: Não se porte de acordo com este mundo, não ande em conformidade com suas mazelas e práticas inescrupulosas, injustas, desonestas, absurdas... Aja de forma diferente. Subverta os valores, já que eles foram invalidados e/ou invertidos.

Não, não se contente com isso que, os outros chamam de vida.

Não compactue, não participe, seja diferente... subversivo!!!

Isso, contudo, não significa, sob hipótese alguma, alienar-se. Estamos inseridos neste mundo, ainda que a ele não pertençamos, e, portanto, o Ser cristão implica relacionar-se com ele, inclusive envolvendo-se e desenvolvendo-se enquanto cidadão e sujeito-histórico. Implica, ao contrário do que levianamente sugerem alguns, pensar. “Crer é também pensar”, já disse Stott.

Logo, não havemos de construir muralhas de ódio e arrogância ao nosso redor, sob a escusa de nos resguardarmos do mundo. Antes, tal como o fez o próprio Cristo, destruí-las, aproximando-nos daqueles que o desconhecem, a fim de que possamos influenciá-los através de nosso exemplo. E assim, vivenciar do que venha a ser “Luz e sal”, metáforas tão preciosas quanto válidas em nossos dias.

domingo, 9 de novembro de 2008

31 de Outubro - UMA NOVA REFORMA???



Uma igreja corrupta, fechada em si mesma e em torno de seus interesses escusos, agindo de forma a manter o povo distante do conhecimento do Deus verdadeiro.

Um povo miserável, faminto, faminto da graça de Deus, distanciado dela, pela hipócrita imposição de pseudo-sacerdotes.

Esse cenário nos remete à Idade Média, período marcado pelo pensamento autoritário e absoluto da Igreja.

O povo se alimentando dos restos de toda fartura e ostentação de que desfrutavam as autoridades clericais. Subjugado, oprimido, reprimido por toda uma ideologia de medo, propositadamente arquitetada para mantê-lo nessa sua condição de explorado... léguas distante da Verdade. Até mesmo o acesso às Sagradas Escrituras lhe era negado. E há uma motivação óbvia para isso. Permitir que o povo conhecesse a Verdade, seria o mesmo que armá-lo contra as mentiras e abusos da “amada Igreja”, abrindo-lhe os olhos para a realidade de um Deus gracioso, que não se deixa permutar.

Maior senhora feudal da época, a Igreja detinha poder econômico estupendo, às custas do ilícito e indecoroso recebimento de indulgências.

“O céu à venda!!!” Pasmem!

Realidade horrorosa aquela, não por acaso chamam-na Idade das Trevas. A Luz do Mundo, o próprio Deus, pretensiosamente ofuscado pela ignomínia de uma raça de víboras... lobos travestidos de ovelhas.

Fiz questão de localizar o leitor sobre o momento histórico a que me refiro, e isso tem um porquê. Não o fizesse eu, correríamos todos o risco de imaginar estar discorrendo sobre os nossos dias atuais.

Não, não se trata de exagero ou simples ignorância. O fato é que, muito daquilo que de mais detestável, abominável que aconteceu quando da Idade Média, tem se repetido em nossos dias. As armas e mecanismos são outros, mas os erros persistem iguais.

Lutero, chamado e capacitado por Deus iniciou o movimento que conhecemos hoje por Reforma Protestante, que acabou por libertar o povo de sua cegueira espiritual. Noventa e cinco teses, que se resumiam em verdades fundamentais: a centralidade da Escritura, a justificação pela graça mediante a fé e o sacerdócio de todos os crentes. Apenas essas três, o suficiente para desbancar a farsa da Igreja.

Diante dessas verdades, como justificar a venda de indulgências, se a salvação é dom gratuito de Deus? Ou ainda, como justificar o restrito acesso às Escrituras e toda sorte de conhecimento, se, somos todos os crentes, sacerdotes do Deus Altíssimo?

Reforma Protestante... mas afinal, protestava-se contra quem ou o quê? Não se enganem, que o alvo de seu protesto não foi a Igreja Católica, mas sim, e ainda o é, o pecado, esteja ele instalado onde estiver e sob quaisquer máscaras ou instituições.

Daí, o título desse texto. Quatrocentos e noventa e um anos depois da primeira, enxergo claramente a necessidade de uma Nova Reforma, porque enxergo se não os mesmos, problemas ainda mais sérios e comprometedores infiltrando-se em nossas igrejas. E o que é pior, nas igrejas que tiveram sua origem na Reforma Protestante. Inaceitável...

Em algumas delas inclusive, continua-se a vender a salvação, invalidando assim o sacrifício único e suficiente de Cristo. A mesma retrógrada prática das indulgências, agora atendendo por outros nomes. Prefiro mesmo chamá-las, a essa igrejas de “pseudo-evangélicas”, já que protestantismo não é isso, em absoluto.

Hipocrisia, uma vida que não condiz com aquilo que se prega, que envergonha e acaba por repelir, ao invés de atrair pessoas para a comunhão com Deus. Em suma, propaganda contra, maus exemplos. O Reino de Deus sendo difamado pelos atos daqueles que o conhecem... De forma que faz-se urgentemente necessária uma Nova Reforma. Uma reforma que ocupe espaço dentro de nós e se manifeste exteriormente através de nossas palavras, atos e comprometimento sincero com a causa de Deus. Precisamos, crentes, voltar a fazer a diferença. Nosso chamado é para isso.

Toda luta de Lutero e outros reformadores, dando suas vidas, foi para que tivéssemos acesso à Verdade que liberta, então, por que retroceder atrelando-se à escravidão de velhos erros? Por que todo esse descaso para com essa Verdade? Por que tanto egoísmo e pretensão?

Uma nova reforma, é o que proponho. Uma Nova Reforma baseada nas velhas, ou melhor, atemporais verdades: Sola Scriptura, Solo Christo, Sola Gratia e Sola Fides. Proponho vivermos a verdade, e só.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

versinho instantâneo

"EU?

EU FAÇO RUSGAS

PRAS RUGAS DO TEMPO"

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

HOJE



Hoje, quando acordei
Tive uma grata constatação
(seria desonesto chamá-la surpresa)

Da janela do meu quarto,
Dos vãos abertos na madeira,
Vinham raios de sol,
Vivos, alegres,
Pareciam ter sido convidados por Deus
a dizerem-me "Bom dia!",
com sua linguagem esdrúxula,
brincando de passear no meu rosto.

Mais que isto,
Eram eles mensageiros benditos
Das novas de lá de fora,
Ainda que com essa sua linguagem metafórica,
Me anunciavam, calados,
Que o sol estava lá, no seu devido lugar,
Cumprindo prazerosamente,
Seu exercício diário de pontualidade e benevolência.

O sol, lindo sol,
Poderoso,
Recebi-o como a um amante,
Ele que aquece todas as peles...
E agradeci, comovida, a seu Criador.

O sol, os carros, a fumaça,
As pessoas...
Tudo, absolutamente tudo
No seu devido lugar,
Todas as coisas convidando-me também
A tomar meu lugar nesse grandioso espetáculo
chamado: VIDA.

Não resisti,
Tamanha era a graça dos lábios,
que balbuciavam o convite,
E sorri, iluminando meus olhos e meu redor,
E segui, agradecida,
Espalhando milhões de sorrisos e "Bons dias!"

O porquê

Porque Ele é bom,
por isso agardeço.

Porque Seus caminhos são retos,
ainda que sugiram ter Ele os escrito em linhas tortas.

Seus desígnios, maravilhosamente insondáveis,
e toda essa misericórdia, que dura para sempre...

Porque Ele é justo,
e nada, nem ninguém escapam ao seu sábio julgamento,
Ele faz justiça como nunca nenhum de nós experimentou,
Juiz incorruptível,
Como Ele, outro não há.

Porque Ele é amor,
prova disto é ter-se feito carne por nós,
é ter-se deixado matar por nós,
Sofrendo assim, morte horrenda...

Porque Ele é Deus,
e esta certeza é tudo quanto me basta,
a mim que sou pequeno e insignificante,
rastro de pó e podridão.

Porque Ele é o meu Deus,
e há amor, e não egoísmo, no uso desse pronome possessivo.

É Ele quem me ama, livra, guarda,
sustenta, direciona, ajuda.

Meu orgulho é afirmar que dependo dEle,
e dEle dependerei por todos os duas da minha vida.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Professores


Os maiores subversivos da História

Ou meios de manutenção da ordem imposta?

Eternos inconformados ou formadores de conformistas?

E o que eles professam, afinal?

Sobre seus ombros pesa toda responsabilidade insana

Que lhe legaram injustamente

De transformar todo o estado das coisas.

E para convencê-lo da honra que seja cumprir tal missão,

Quase sempre procuram bajulá-lo hipocritamente,

Com títulos e adjetivos,

Que não condizem em nada com a vocação sincera de sua alma.

Chamam-lhe mestre,

Afirmam veementemente que seu ofício é na verdade um sacerdócio...

Quanto absurdo!

E pensam mesmo as massas que o professor é isso:

Quase que uma visão metafórica,

Um ser débil, que precisa constantemente ser reanimado

Por novas e velhas mentiras,

Logo ele, que odeia as unanimidades burras,

E caminha sempre e solitário rumo à verdade.

Querem canonizá-lo,

Fazendo-o assim refém de suas fraquezas.

Sim, o professor é um ser humano,

Ainda que o neguem tanto o Estado,

E por vezes ele próprio,

Agindo com pretensão desmedida e, diria eu, masoquista.

Mas é também, ou o são apenas os autênticos,

Seres inquietos, desejosos de mudanças,

Urgentes e necessárias.

A começar pelo tratamento que a sociedade tem lhe dado,

O mesmo que ela oferece aos seus santos bastardos:

A grandiosidade reverente dos títulos sacro-santos,

E o sacrilégio das esmolas furtadas, ainda que diante de sua imagem.

Sem se falar nas atrocidades cometidas,

Por amor e em seu nome.

Basta!

O professor não é nada disso,

que os autorezinhos medíocres de livros de auto-ajuda propagam impiedosamente,

Nem tão pouco os heróis dessa nação inculta.

O professor é a tentativa diária da resistência,

Já que diariamente tentam aniquilá-lo,

Com investidas cruéis para promover a segregação da classe,

Ou simples “cala-boca”, quando diante do horror da greve...

Mas resta saber:

Seria ele tão nocivo assim?

Se não o for, certamente que não será digno de chamar-se PROFESSOR.

domingo, 12 de outubro de 2008

NOITE


Havia ainda no ar uma aura de poesia e inquietação deixada pela exibição dos curtas, parte da programação do Cardápio Underground. Caminhava em direção à praça central, em passos adolescentes, o vento impetuoso contra o rosto, all star nos pés, e a sensação de que o mundo ainda me pertencia, com toda sua poesia e mazelas. Havia um certo poder em reconhecer essa verdade.

Entre uma conversa esparsa e outra, meus pensamentos me conduziam a reflexões interessantes, havia, milagrosamente retomado essa minha faculdade, e sentia-me viva novamente. Talvez a sensação cortante do frio (havia saído de casa sem agasalho) contribuísse para potencializar todas essas sensações. Estava viva, eu e meus devaneios todos, até bem pouco tempo adormecidos, agora, despertos novamente.

O caminho já conhecido parecia ganhar também novos ares, novos eram os velhos pés que se deixavam conduzir por ele. E seguíamos, eu, meus pensamentos, alguns amigos e a noite que se estendia no céu feito lona de circo pobre, remendada de estrelas. O frio passando pelos vãos do remendo inútil.

Quatorze graus, era o que o termômetro da praça marcava solene. Minha particular sensação térmica beirava os quatro. Pausa pra um cachorro quente, estrategicamente localizado em frente ao antigo cinema. E como ainda me dói o acréscimo dessa palavra “antigo”... Porque ela soa vazia, melancólica, quase fúnebre. Estranha a sensação de ver aquele prédio desprovido de significado. Um esqueleto apenas daquilo que um dia representou. Quase como a impressão que deixa um teatro vazio depois de uma apresentação calorosa. Resta sempre muito vazio e alguns questionamentos... Ainda mais porque acabara de assistir a um curta, em que seu antigo proprietário falava, nitidamente emocionado sobre a perda...

Conversas esparsas, e uma em especial. Estávamos em roda, planejando ir embora, quando uma figura aproximou-se. Um hippie, com aquela leveza que só os hippies têm, aquele ar despreocupado e ao mesmo tempo grave, quando citando “problemas”. Trazia nas mãos alguns colares e nos lábios uma vontade imensa de convencer-nos a comprá-los. Prosa interessante a do homem, que olhava nos olhos, e falava e cantava Raul ali, em frente ao antigo cinema e a barraquinha de cachorro quente. De uma sinceridade vivaz, impressionante em dias de hipocrisia como os nossos. Justificou a necessidade da venda, utilizando-a e convenceu. Havia nele, pude notar, uma tristeza camuflada pelo descaso pelas coisas graves e quaisquer regulamentos sociais, havia a urgência de viver confrontada pela dor de existir.

Em mim, havia ainda e agora mais pungente, a poesia despertada por meio do programa cultural e pela presença inusitada do tal senhor, distinto senhor, o hippie, de quem não soubemos nem mesmo o nome.

Detalhe menor, insignificante, diante da urgência da vida diante das investidas da morte...

E a noite, agora lona ao vento, Ventania, o céu rasgado anunciando tempestades de poesia e vida e morte.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

A Bibliotecária



Estava lá, não por qualquer aptidão,
nem tão pouco por nutrir paixão pelos livros,
por conhecê-los ou cultivá-los como bons amantes que são,
mas por conveniência,
por ser a Biblioteca local de silêncio e ordem
e ter ela uma figura austera.

Aliás, isso sempre me inquietou,
o fato de serem as Bibliotecas locais de silêncio e ordem,
quando na realidade, deveriam ser reduto escandaloso
de vozes alteradas, idéias, discussões...

Ordem?
Qual seria o critério estabelecido por ela?
Autor? Assunto? Título da obra?
...
Talvez fosse mais fácil responder a qualquer
grave questionamento filosófico-existencial...

Não havia ordem alguma ali,
nenhuma que se respeitasse,
fosse por coação ou prazer.

Nem mesmo a caduca ordenança: LEIA MAIS!
ali tinha espaço,
dada a rigidez da Bibliotecária e
seu esmero por manter muitos longe dos livros.

Só mesmo os mais persistentes
chegavam ao êxtase de tê-los nas mãos,
levá-los para casa nas mochilas...
Fiéis ao deleite de ler,
resistiam bravamente às escusas da distinta Sra.:
- Esqueci a chave hoje...

Invejei aquela mulher por algum tempo,
Mas só até chegar a manifestar por ela outro sentimento,
feio sentimento: pena!

A princípio, a invejava por viver ela cercada dos tais amantes,
Mais tarde, senti dela pena, em função de sua indiferença para com os mesmos,
seu descaso, sua quase aversão.

Cercada por Drummond, e Pessoa, e Quintana, e Rubem Braga,
e Machado, e Rosa, e Suassuna, e Quino,
Mas, não, ela jamais chegaria à estirpe de Mafalda.

Pobre mulher, estranha mulher,
cercada de amantes,
não sabia nutrir por eles nenhum amor.

Queria apenas manter a ordem ( a das estantes),
mal sabia de sua valiosa ocntribuição para a manutenção da outra...

sábado, 6 de setembro de 2008

7 de Setembro



Mas pra onde é que se marcha?

Sigo na cadência ríspida dos passos em coturnos

Mas pra onde é que se marcha?

É pra frente que a tropa marcha, em sincronia e disciplina,

É pra trás que a vejo, e pra onde meu olhar se dirige, acompanhando-a,

Nesse eterno retrocesso.

Na platéia, que assiste a tudo, sem entender o porquê de nada,

Há um misto de contentamento e tédio.

E o sol, sol forte, não traz nos raios cintilantes a sonhada liberdade.

Nada é como no hino...

Mas pra onde é que se marcha?

E quem é que lidera as tropas?

Quem são esses soldados, que seguem obedecendo... a marcha?

São meninos esfaimados, mulheres raquíticas,

Homens envelhecidos pelo descaso e pela dor.

São obedientes soldados,

Que já não podem lutar.

Quantos passos já terão dado em direção a seu fim?

Quantas vezes, obedecendo estupidamente aos seus superiores,

Eles retrocederam?

Pra onde é que marcham?

Acaso marcham rumo à liberdade? À sonhada independência?

Receio que o trajeto desses pés calejados pelos coturnos da opressão

Os conduza ao covil do inimigo,

Os conduza a perpetuar seu estado de torpor.

Para eles, o marchar já é um ato mecânico,

E o cansaço os impede de pensar sobre qual seja seu destino.

Pra onde é que se marcha?

É justamente por conhecer a resposta a essa pergunta,

Que escolho marchar pro lado contrário ao das tropas,

Ainda que essas venham por sobre meus ideais,

Com seus fuzis e toda força forjada...

Eu escolho marchar a marcha dos contrários,

E o convido a me acompanhar,

A compactuar comigo desse meu constante estado de revolta,

A recusar-se a acompanhar as marchas,

Que seguem perpetuando mentiras.

E aí talvez juntos, encontremos uma resposta:

Pra onde é que marchamos?

segunda-feira, 14 de julho de 2008

MELHORIAS


Tudo parado,
O trânsito, a vida, as pessoas.

Tudo nesse constante estado de torpor e inércia.

Os mesmos velhos problemas,
Os mesmos velhoa candidatos a solucioná-los.

Discursos, pose para fotos, conluios...

O sol ferindo minha pele pela janela do coletivo,
O coletivo sempre tratado como escória.
A pressa forçando a passageira a saltar antes de seu destino
E continuar o trajeto a pé.

A demora, a fila,
A vontade incontrolável de me ver mais perto de casa.

OBRAS!

Há centenas delas espalhadas pela cidade,
Na maioria, desnecessárias
Existem em função da data... propícia.

Aproximam-se as eleições
E com elas, aumenta minha suspeita
De que elas não bastam.

A placa, que parecia sorrir, espalhando mentirosa simpatia:

"MELHORIAS PARA A CIDADE DE BRAGANÇA PAULISTA,
DESCULPEM-NOS PELO TRANSTORNO"

CUSPARADA

Minha poesia é uma cusparada espessa,
Só isso.
Seu maior defeito?
Quase sempre lhe falta impulso pra atingir o alvo,
E então ela escandaliza os demais
com suas gotígulas virais,
umidecendo-lhes, violentamente as faces,
agora tomadas pelo rubor.
Asco e desprezo é tudo quanto desperta,
Ao menos nesses mais desavisados,
que impõem-se em seu caminho
e não a suportam.

quarta-feira, 25 de junho de 2008



"Acredito, sim, em inspiração, não como uma coisa que vem de fora, que "baixa" no escritor, mas simplesmente como o resultado de uma peculiar introspecção que permite ao escritor acessar histórias que já se encontram em embrião no seu próprio inconsciente e que costumam aparecer sob outras formas — o sonho, por exemplo. Mas só inspiração não é suficiente".

segunda-feira, 23 de junho de 2008

POEMA DE ANIVERSÁRIO


Sei que minha existência representa um fardo pesado pro mundo,
E se não mudo, é justamente por ter essa consciência,
De que desagrado e incomodo e difiro e contesto,
E estou sempre à margem,
À margem desse lamaçal de mentira, medo e ódio.

No meu caminho há flores, que poucos enxergam,
Há leveza e beleza suficientes para torná-lo mais ameno.
Há fé e esperança, que tornam meu semblante menos grave,
E me fazem destoar do restante dos transeuntes.

Porque para mim, a vida soa urgente e viva,
E não há nela lugar para protocolos e burocracias.
Esse espaço todo está devidamente preenchido pela poesia,
Minha poesia pobre, livre e tão necessária a minha humanidade.

Estou cercada e alicerçada por crenças infantis aos olhos do mundo,
Esse mundo adulto, adulterado, que não me apetece em nada,
Com suas dúvidas eternas e filosofias delirantes,
E todas as dores que estas lhe trazem...

Tenho dores também, às vezes elas são necessárias,
Mas em contrapartida, tenho antídotos e bálsamos em minha alma.

Entendo a vida, repudio a existência.

Sobrevivo ao caos, como o sol,
No seu exercício diário de pontualidade e benevolência.

Sofro de um tipo raro de esquizofrenia chamado poesia,
Jamais ousei buscar sua cura,
Esse constante estado diverso de beleza e consciência crítica
Que ela me proporciona
É tudo quando mais desejo.

Logo, aceito meu fado de doente crônica com um prazer absurdo,
E sigo vivendo, não apenas existindo, nesse nosso mundo de absurdos.

Viver implica dizer não ao conformismo:
- Sim, eu vejo flores nascendo no asfalto!

domingo, 15 de junho de 2008

Festa Junina

Entre bandeirinhas coloridas, que não me remeteram o pensamento confuso a Volpi, conversas, risos, singelas explosões e muita gente, Adoniran Barbosa aliviou meus ares. Arrisquei até acompanhá-lo, cantarolando baixinho o Samba do Arnesto. No mais, a noite era só uma promessa, iluminada por luzes e alegria artificiais, regada ao som estridente das bombinhas que estralavam, tocando o chão furiosamente. E as crianças correndo, pisando as flores, ainda há pouco plantadas nos canteiros da praça. A cidade vai aos poucos sendo reviltalizada, estamos às vésperas da eleição...
E o prefeito, sorridente, caminhando entre os presentes, a mão estendida a todos, abraços, beijos, promessas... Fingi não vê-lo.
Ouvi conversas que falavam sobre traição e risos.
Queria um doce. Olhei pra fila do caixa, enorme, como toda fila o é por essência. Enorme de um lado só... Estranho, por que aquela aglomeração, se do outro lado atendia-se da mesma forma? Não entendi, aliás, não entendo mutias coisas.
Pro doce, não precisava comprar ficha. Foi o que fiquei sabendo, tão logo cheguei ao guichê.
Na barraca, enfeitada com flores de papel colorido, impressionaou-me a destreza da senhora que atendia. Fazia-se notório o fato de que ela, habituada a ser servida, não tinha nenhuma intimidade com os talheres. Nessas festas, ao menos nelas, alguns papéis se invertem. Normalmente, são senhoras da "high society", que atendem nas barracas, atendendo a uma espécie de chamado espiritual, afinal, tudo que se arracada nelas é revertido às causas da Igreja.
Hilária a cena da madame brigando com a espátula...
No mais, a festa não mudou meus ares. O doce não adoçou minha existência esdrúxula. E a música de Adoniran foi só um respiro, necessário respiro.

sábado, 7 de junho de 2008

Alma

Um varal onde você pendure seus sonhos,

Sem a necessidade da amarra de prendedores,

Que o vento não é tão forte a ponto de derrubá-los,

E a brisa apenas os impulsiona,

Projetando-os à frente.

Nem o sol tão quente a ponto de ressecá-los,

Fazendo-os perder o viço,

Mas quente apenas o necessário para torná-los fecundos.

E que o varal se estenda desde o princípio daquilo que afirmamos conhecer,

Até a fronteira com a eternidade,

Para que o mundo seja repleto das cores e da leveza dos sonhos,

Avolumando-se delicadamente

Nesses varais flutuantes

Que chamamos alma.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

À margem


Luzes fluidas percorrendo as águas,
Azuis, alaranjadas
São postes e suas lâmpadas.

Tremulando, parecem vivas e mágicas,
Contudo, incapazes de atender aos meus desejos.

Da outra margem, vêm ruídos esparsos
De conversas e copos e alguma música.
Eles sugerem alegria.

Os rostos nas mesas
E perambulando entre os carros, também.

Há multidão de rostos e carros
Que, com seus faróis acesos
Entretêm meus olhos,
Num movimento quase que hipnótico.

Contemplo essa cena toda, de longe,
Da outra margem,
A margem silenciosa,
Quase deserta, quase irreal.

Sempre gostei mais desse lado do lago...

Do lado de cá,
A gente é mais verdadeiro.

segunda-feira, 26 de maio de 2008


"Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias."
(Clarice Lispector)

sábado, 24 de maio de 2008

Necessidade

Sei que a luz não é propícia,
Nem o local,
Nem minhas pálpebras e mãos e cérebro...

Mas escrevo poemas antes de dormir,
Talvez com a intenção de encontrar neles
Repouso e aquietar minha alma.
Quanta falsidade!

Bem sei que, ao invés disso,
Eles costumam tirar-me o sono!

Indecible


Noite passada
Sonhei com uma palavra,
Acordei sorrindo.

Estranha palavra,
Tão estranha, que não sei pronunciá-la.
Palavra melindrosa,
Não se me mostrou por completo.

Palavra indizível,
Sem face.

Logo eu que gosto de olhar nos olhos das palavras,
Assim como faço com as pessoas,
A fim de adivinhar-lhes as intenções primeiras,
Escondidas sob o tênue véu das aparências...
Me decepcionei.

Não, não chegeuei a fitá-la,
Essa palavra misteriosa e arredia,
Não sei nem ao menos dizer-lhe a cor.

Sim, vejo cores nas palavras,
E peso e altura,
E o que dizer-lhe então da voz?

Tudo quanto meus ouvidos entorpecidos puderam captar
Era algo entre o grave e o melodioso.

Agradou-me ouvi-la,
Essa palavra que fala,
Sem mostrar a face.

Amanheci na louca tentativa de lembrar-me de suas formas,
Letras, sílabas...
Esforço vão!

Sonhei palavra indizível,
Singular, rara.

Dessas que, quando pronunciadas,
Enchem de vida todos os recantos da boca.
Palavra mágica,
Que me trouxe à lembrança trapos de felicidade e esperança,
Algum conforto, alívio, um quê de inocência,
Cuidado e amor despretensioso.

Talvez por isso,
E apesar de sua incógnita manifestação,
Tenha me restado uma única certeza:
Essa palavra,
Que agora passo a idolatrar,
Feito um nome divino,
Sem incorrer no pecado de maculá-lo, pronunciando-o,
É substantivo próprio.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Idas e voltas II


Ponto de ônibus, espera, mp4.
Pernas cruzadas, all star violeta, olhares curiosos, desdém.
Ao lado do ponto, uma banca de jornal,
A única da cidade.

Vento, vento forte,
Tanto que fez um de seus exemplares voar,
E que belo vôo fez,
Até que, exausto repousou lentamente sobre o chão de terra batida.

Foi aqui que pensei:
Vou pegá-lo e devolvê-lo à dona.

Pensei... tarde demais,
Antes que me levantasse,
O distinto senhor, que ocupava assento próximo ao meu, levantou-se,
Recolheu as folhas do periódico, ajeitando-as delicadamente,
E, para minha surpresa, começou a lê-las.

Entendi que passara então, a possui-las.
Decepção. Ainda lançara um olhar risonho em minha direção,
Como que tornando-me sua cúmplice... Eu era?

Voltei a concentrar-me na canção,
Um novo personagem entra em cena,
Procurava fones de ouvido, ali não havia para vender.
Começou a falar ao celular,
Minha indiscrição e curiosidade vorazes
Captaram toda a conversa,
Enquanto que minha sensibilidade deteve-se em sua parte final:
- Bênção, mãe!

Achei bonito.
Lembrei-me do modo como sempre me despeço da minha:
- Adiós!
Ao que ela responde:
- Vai com Deus e cuidado!
Às vezes retruco:
- Cuidado com o que, mãe?
("Viver nem não é muito perigoso?")

Não deixa de ser uma bênção.

E a música de novo interrompida,
Agora pela chegada do ônibus.

Novamente paisagens sucedendo-se na janela,
A solidão e a promessa de Sebastian.
Muitos anseios, pouca poesia.

Sigo viagem,
Alguém já disse que a vida é a estrada.
Sebastian ainda grita em meus ouvidos,
Eu o acompanho em pensamento,
Nota por nota, até onde posso alcançar.

E a vida segue com a estrada,
As duas se confundem,
A vida é só mesmice.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

IDAS E VOLTAS


Rock pesado pra acalmar, disfarçar a ansiedade, e quarenta minutos de ônibus até o trabalho. Quarenta minutos de Sebastian Bach e algumas paisagens rotineiras. Sete da manhã, muito sono e nenhuma vontade de encarar a burocracia do sistema educacional.

Volume máximo, a intenção é abafar o ronco ensurdecedor do transporte público, que faz inúmeras paradas ao longo da Fernão Dias. E eu me pergunto, quando atento para esse nome: ele merecia tal homenagem? Não importa, a vida segue junto com o ônibus. Na minha cabeça num ritmo mais veloz, acompanhando a bateria.

Penso nas obrigações do trabalho e no trabalho que isso dá. Penso que é em vão, então, desisto de pensar nisso e me concentro na paisagem. Não havia notado uma árvore, acredito que centenária, enorme, parecendo definir o adjetivo frondosa. Ela sempre esteve ali, à beira da estrada, mas só hoje meu olhar perdido a notara.

Quantas imagens mais meu olhar haveria ignorado? Quantas pessoas, estando elas à margem ou não do meu caminho? Isso me sugere perda. A letra da música que ouço também. E repito elas várias vezes ao longo da estrada.

Me apetece a idéia de ouvir Sebastian gritando aos meus ouvidos: “I will be right there by your side”. Soa como um consolo. Estou sozinha com meus devaneios. É só mais um dia como outro qualquer, igual a muitos que a ele ainda seguirão... ou não.

Quando desisto de ouvir Sebastian, (já o havia ouvido na mesma canção três ou quatro vezes) ouço rumores de conversa. O assunto: política, e me fere os ouvidos o clichê maldito: “Ele rouba, mas faz. E o outro que rouba e não faz nada!”

Volto pra música, agora quase chegando ao meu destino. As imagens vistas da janela aprecem sempre mais bonitas que quando vistas de perto. Talvez seja esse o trunfo da distância. Me sinto distante daquilo que almejo. Sinto saudades daquilo que ainda nem provei.

Talvez eu seja mesmo uma pessoa muito estranha. Ou é o mundo que está assim. Ou mesmo as duas coisas. O fato é que enxergo além da estrada, do ônibus e do valor da passagem, enxergo dor no semblante das pessoas à sua margem. Observo as folhagens empoeiradas e reconheço nesse pó minha própria essência. Estou sempre à margem.

A volta não difere muito da ida, a não ser pelo acréscimo de alguns personagens: um nenê, a quem oferto um sorriso afável, e me retribui, como somos os nenês sabem fazer, oleiros, nesse trabalho pesado e desvalorizado, com pó até a alma, velhos que acenam contentes, cumprimentando o motorista, crianças imundas e felizes brincando nos quintais, onde as roupas tremulam ao vento e compõem uma cena belíssima, em função de seu multicolorido.

Volto a ouvir “By your side”, agora, ansiosa por chegar em casa e esquecer os devaneios todos que a paisagem me provocara.

Já deixei a estrada, contudo, continuo à margem. E meus devaneios ainda me perseguem.



terça-feira, 13 de maio de 2008

O cavaleiro

Ela chegou sorrateira, como de costume, e com seu manto negro, tornou tudo em sua volta luto. Esse corcel indomável, cujo tempo do galope não se conhece, nem se determina, mas que à sua própria hora chega para todos, sem exceção.

Inevitável, ainda incompreensível, morte.

Quando essa indesejada visita chega e se aloja em nossos lares, é difícil não sentir o odor pútrido de sua presença. É difícil recepcioná-la em nossas salas, é quase impossível não salgar seu café com nossas mais sentidas lágrimas.

E sobra então, apenas aquilo que chamamos de lembrança, que é diferente da saudade, por ser essa última a mais aguda das dores, como o desejo insuportável de tornar a lembrança viva de novo.

Mas, infelizmente é mesmo com a morte que aprendemos sobre a vida, por mais contraditório que isso pareça ser.

Aprendemos principalmente com aqueles que se vão, deixando para trás um rastro de felicidade e plenitude. Aprendemos apenas com aqueles que souberam viver, aproveitando esta dádiva ao máximo. Está certo que na maioria das vezes são incompreendidos, criticados... quase sempre por quem encontra na rigidez hipócrita dos deveres sociais, desculpas para não gozar a vida intensamente.

Isso, é claro, não ameniza a dor da partida, muito pelo contrário, a acentua ainda mais, afinal, pessoas assim são raras.

Delas nos restará sempre a lembrança quase infantil das muitas molecagens, do pouco compromisso, da nenhuma seriedade, da irresponsabilidade, com que tanto sonhamos, da inconseqüência, que temos nos negado, da vida, que temos nos negado a viver, em função das muitas obrigações, que nos impuseram algum dia...

E morreremos todos nós, sem nunca sequer termos vivido. Morreremos e ao nosso velório alguns poucos “amigos” estarão presentes, mais uma vez, apenas por conveniência social. Porque nem amigos verdadeiros, durante todo o curso de nossa existência, tivemos tempo de conquistar. Já os “inconseqüentes”, em quantos corações deixaram as marcas da saudade sincera, da devoção genuína, do amor, conquistado aos risos...

Lamentemos a morte, isso não é proibido, mas aprendamos com ela um pouco mais da vida, que ela se extingue facilmente, inesperadamente, num canto qualquer, no meio do mato, tendo por testemunhas apenas o azul infinito do céu e seu criador, Deus. E ainda que demorem por dar por nossa ausência ou simples demora para retornar, Ele vela por nós em silêncio, porque infinita como o céu é a sua misericórdia.

E a morte é só esse corcel alucinado, em cuja sela vai montado cavaleiro de mira certeira.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

LIMÃO


É a um azedume horrendo que se reduz nossa existência. Essa afirmação assim crua, impiedosa poderia reduzir alguns fortes às lágrimas, no entanto, ela já não causa em nenhum de nós, pobres proletariados disfarçados de burgueses, nenhuma reação mais incontida. São tempos de torpor e a necessidade de lucro e a velocidade do algoz impedem quaisquer paradas para reflexões sentimentalóides.

A vida se repete e se anula, ressurgindo e aniquilando-se em erros contínuos. Lugar interessante para observá-la é o ponto de ônibus. Sim, ônibus, essa palavra nobre de origem latina. Foi lá, num ponto de ônibus que, cansada, maldizendo a demora e o preço da passagem, presenciei uma cena incomum.

Ele vinha como sempre vagarosamente, cabisbaixo, o boné descorado enterrado na cabeça alva, as muitas marcas implacáveis do tempo tomando-lhe o semblante cansado, do qual os dois grandes olhos azuis saltavam incrivelmente belos, vivazes, incompatíveis com o resto do rosto, incomparavelmente joviais.

Arcado, limpando num lenço bege a face, toda vez que a tosse intermitente lhe constrangia, ele seguia desviando ora de multidões, ora de crianças, ora de cães, que desamparados têm por lar a estação e por inimigo feroz a sarna. Ele parecia gostar deles, na verdade tratava-se de um sentimento recíproco, vistas as muitas balançadas de cauda que estes lha davam, como que saudando-o.

Ele, saudava a vida no seu sentido mais amplo, e por isso mesmo, autêntico. Ele, o velho vendedor de sorvetes parecia compreendê-la em seu grandioso mistério.

O cliente era também idoso, e conforme aproximavam-se o carrinho e seu condutor, esforçava-se procurando por moedas no bolso largo das calças amassadas pela espera. Mas o esforço não foi em vão, ele finalmente as encontrou, e num gesto rápido estendeu-as na palma da mão suja e enrugada, a pele fina feito renda, as veias grossas, roxas avolumando-se nela, e fez seu pedido.

Ele queria, ele adorava sorvete de limão, desde sua mocidade este era seu favorito.

Nosso nobre vendedor também num gesto rápido, rotineiro, quase macanizado por anos e anos de reptição, entregou-lhe a iguaria.
Espantado, meio que constrangido, o cliente disse:

- Não, eu não tenho todo o dinheiro. Lembrara-se de ler na placa empoeirada afixada no carrinho o preço da mercadoria: cinqüenta centavos. Quarenta era tudo o que ele possuía.

Imagine o leitor a cena, que a esta última se seguiu. Ferozmente avançando contra o cliente, nosso velho toma-lhe o sorvete da mão, deixando-lhe como consolo um frio "sinto muito".

É, mas não foi assim que as coisas se sucederam naquele dia. Ao contrário do que possam imaginar muitos e até mesmo desejar outros, num sorriso autêntico, os olhos azuis ainda mais azuis, iluminados por alguma estranha luz, que a cobertura da estação não pudera filtrar, o sorveteiro, contrariando a primeira sentença deste relato, disse com sua voz enrouquecida pelo fumo:

Não é por causa de dez centavos que o senhor não vai provar o meu sorvete.

Note-se que enfatizou durante a fala os dez centavos, e usou de rara polidez quando referiu-se ao cliente por senhor.

Feliz, como todo aquele que, liberto de toda e qualquer mediocridade ou sentimento egoísta segue sua vida ou o pouco que ainda lhe resta, sem presunções, atitudes viciosas, grandes cargos, encargos, ou falsidades, sujo nas vestes, das quais os botões desprendiam-se enquanto caminhava lentamente, o mesmo corpo arcado, os mesmos sapatos gastos, a alma sempre renovada, ele seguia não sei para onde. O sol vespertino o acompanhando feito cão sarnento, os cães espreguiçando-se sob seus raios. A vida veloz e maldita passando-lhe por sob as vistas cansadas, de quem já assistira a tantas atrocidades, de quem talvez muito já tivesse chorado.

Sessenta e cinco anos (ele deixara escapar durante a conversa), de uma existência lutada, sofrida, porque é isto que se faz nesse mundo: sofrer. Era o dia de seu aniversário, e seria utópico demais dizer que ao chegar em casa, familiares o estariam esperando à mesa repleta de comida e festa.

Ele seguiu, a esquina me impediu de o seguir acompanhando, já que a vida é palco de desencontros. A vida lhe parece querer fugir dos pulmões, a vida logo o abandonará, feito os cães vadios que, interesseiros só o acompanham enquanto ele lhes dá o que comer. A vida resume-se a essa cena.

A vida tem o sabor doce, amargo, azedo do limão.

domingo, 11 de maio de 2008

"Que tempos são esses, em que é quase um delito se falar de coisas inocentes"
Brecht

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Metrópole

Queria ser a cidade,
Provocando a eterna ilusão,
De que seus transeuntes a possuem,
Quando, na verdade, é ela quem os possui e manipula.

Ter em minhas veias o tráfego insano da cidade,
Sentir seu ritmo alucinado
Borbulhar meu sangue.

Ter nos ouvidos os seus inúmeros falares,
Com todos os seus sotaques e armadilhas,
Sussurros, senhas e gritos de horror.

Na pele, as marcas da cidade,
Uma poluição visual sob a forma de tatuagem.
A violência permanente dos anúncios mais indecorosos,
Ferindo-me a derme.

Nos olhos, o multicolorido de sua miscigenação.

Nos cabelos, o pó da cidade,
Essa sua rudeza e hostilidade,
Que insitem em chamar por outros nomes.

Nas mãos, o controle absoluto
Sobre aqueles que passam,
Sem saber que ficam
Impregnados em mim.

Nos pés, muitos descaminhos,
A pressa, a urgência!
Há pressa e urgência na cidade.

Na alma, o vazio enorme
Gerado pela constatação óbvia:
A de estar só em meio à multidão,
Com uma única ressalva consoladora:
Eles 'pensam' me possuir...

domingo, 4 de maio de 2008

Olhos feios


Hoje me aconteceu algo estranho
Alguém que me conhece há mais de dez anos, me disse:
- Que lindos seus olhos!
Surpresa, sem graça, agradeci,
Mas segui pensando, tentando traçar a lógica daquele elogio:
Eles não são sempre os mesmos?
Não, hoje estavam tristes...
Talvez por isso, eles brilhassem mais...
O verde de sempre sofrera uma mutação.

De tudo, de toda essa divagação esdrúxula,
Sobrou apenas uma certeza:
Quero, preciso viver com olhos feios!

quinta-feira, 1 de maio de 2008

CANÇÃO DA SAÍDA


Se não tens o que comer
como pretendes defender-te
é preciso transformar
todo o estado
até que tenhas o que comer
e então serás teu próprio convidado.

Quando não houver trabalho para ti
como terás de defender-te
é preciso transformar
todo o estado
até que sejas teu próprio empregador.
e então haverá trabalho para ti

se riem de tua fraqueza
como pretendes defender-te?
deves unir-te aos fracos.
e marcharem todos unidos.
então será uma grande força
e ninguém rirá.

BERTOLD BRECHT

terça-feira, 22 de abril de 2008

...



Minha poesia nasce da minha doentia mania de observar,
E ainda que arrancasse os olhos, feito Édipo,
Me restariam os outros sentidos,
E aguçados que estariam pela falta da visão,
Me mostrariam com maior exatidão
O que me nego a constatar...

Os mendigos feririam minhas narinas com seu odor pútrido,
De quem ainda em vida veste mortalhas.
E seu clamor atingiria meus ouvidos, tão profundamente,
Que seu eco me acompanharia ao longo de semanas inteiras.

Minhas mãos os tocariam,
Quando do ofertar de umas míseras moedas,
E sua aspereza seria sentida pelo meu tato,
Assim como cada um de seus calos e marcas,
E grossas veias nos velhos de pele muito fina.

Meus lábios provariam, sem nenhum pudor,
Do azedume de sua refeição,
Colhida no lixo...

Eu não tenho poder nenhum sobre minha poesia,
Meus olhos me atraicionam,
Dirigindo meus olhares pros guetos,
Onde residem as mazelas,
Pros meninos esfaimados,
Pras meninas adulteradas e prostituídas,
Pra toda sorte de injustiça e dor...

E chego mesmo a invejar os distraídos,
Que passam e nada notam.
Eles não sofrem do meu desassossego,
Nem sequer imaginam o porquê de minha constante agonia.

Mas, em contrapartida,
Essa mesma ausência de visão,
É quem os priva de ver,
Tal como faço,
As flores que nascem silenciosas, na aspereza do asfalto,
Diariamente,
Em meio aos carros, sempre apressados,
Erguendo-se até a altura de suas janelas...

Só as moças mais sensíveis as vêem, colhem,
E com elas, enfeitam os cabelos,
Enquanto dirigem olhares insinuantes aos namorados,
Que, envolvidos pelo trânsito,
Nem as notam.

domingo, 20 de abril de 2008

Fogos e artifícios

Nesta cidade de fogos e artifícios,

Sem cinema,

O filme é sempre o mesmo,

Com o mesmo enredo insosso e repetitivo,

De um povo entorpecido,

Pelo muito circo e pouco pão.


E me enoja essa ansiedade toda

Por comemorar não sei o quê.

Festejar o quê?

Espera-se um ano todo,

Para confirmarmos nossa tendência à alienação.


E com que ânimo a confessamos,

A ponto de ser impensável sua inexistência,

Movidos que somos à distração...


Ânimo este que não se revela em outras situações,

Não, com essa intensidade toda,

Situações,que por graves e urgentes,

Demandariam todo nosso esforço coletivo.


E nada muda,

Até mesmo a crítica não muda de ares,

E ainda assim permanece válida e atual,

Validada pelo estado sempre imutável das coisas.


As coisas não vão bem...

Isso não importa,

Há uma festa lá fora,

Há multidões de risos e falso contentamento,

Há fogos e artifícios,

Há esquecimento e torpor,

Nessas luzes efêmeras.


Mas há também,

O fim de tudo,

O fim do esquecimento,

Que chega com o fim da festa,

Trazendo consigo o dilema de José:

- E agora?


sábado, 19 de abril de 2008

EU


Sou capaz de entrar e sair, sem que me notem,
Falo pouco, e categoricamente,
Não me ajusto, contrario e sinto prazer nisso.

Conservo a timidez dos fortes,
A inércia dos covardes,
E minhas palavras são sempre muito melhores que eu.

Olho sempre nos olhos,
E repudio quem se intimida com isso,
Porque sim, há quem se intimide...

Eu sou mesmo assim,
Os outros é que erram,
E me idealizam, esperando de mim,
Tudo em demasia.

Eu não espero,
Não tenho paciência nem mesmo pra planos,
E sigo sem rumo,
Porque possuo a íntima certeza,
De que é sem rumo,
Que se chega aos destinos mais certeiros.

domingo, 13 de abril de 2008

Os quatro elementos


Fosse a vida um manancial,
Bebe-la-ia toda num gole só,
Feito louco sedento diante de um copo d'água.

Fosse ela chama,
Me deixaria consumir por ela, lentamente,
Feito borracha teimosa.

Fosse ela terra,
A distribuiria entre os miseráveis,
Feito latifúndio tomado à força,
Me contentando com o amplo espaço de sete palmos.

Fosse ela ar,
Me volatizaria, misturando-me a ela,
E feito gás carbônico,
Castigaria as narinas da humanidade,
Com meu perfume hostil.

domingo, 6 de abril de 2008

CHE


Ele já morreu?
Não. Suponho que não.
Mesmo? Tem certeza?
É só ver. Suas pupilas não estão dilatadas ainda.
E a respiração?
Está leve.
Quando ele vai morrer?
Posso eliminá-lo, senhor?
Breve.
Não fique assim, não, eu lhe asseguro que vai morrer.
Certo, estou mais calmo, aliás, o que ele fez?
Ele?
Sim.
Ele nasceu, teve infância, um lar, pai e mãe
Alguns irmãos.
Depois?
Cresceu, comprou roupas e uma moto com o suor do seu rosto,
teve dois trabalhos.
Depois?
Leu alguns livros, se interessou por uma garota.
Depois?
Pensou ter visto a liberdade numa esquina da cidade.
Depois?
Aprendeu apesar de tudo
que nos corpos ainda resta alguma liberdade
sem esquinas e sem cidades.
Palavra perigosa esta.
Concordo, muito perigosa.
Olha, parece que resiste.
É necessário que ele morra.
Sim.
Está na hora.
E mal lhe eprguntando,
qual foi seu último pedido?
Fazer uma poesia.
Que desperdício de pedido, poesia,
merece morrer mesmo.
Concordo plenamente.
Tem ela aí?
Queimei-a com suas roupas e pertences.
Você é muito competente.
Obrigado, senhor, bondade sua.
Olha, passa da hora, mate-o!
Posso?
À vontade.

Pronto.

E o corpo?
Enterre-o no jardim de casa
Minha mulher sempre reclamou da falta de adubo das hortências.

Nestor Lampros.




terça-feira, 1 de abril de 2008

"Eu acredito que a poesia tenha sido uma vocação, embora não tenha sido uma vocação desenvolvida conscientemente ou intencionalmente. Minha motivação foi esta: tentar resolver, através de versos, problemas existenciais internos. São problemas de angústia, incompreensão e inadaptação ao mundo."
(Carlos Drummond de Andrade)

segunda-feira, 31 de março de 2008

"Se alguém te perguntar o que quiseste dizer com um poema, pergunta-lhe o que Deus quis dizer com este mundo..."
(Mario Quintana)



domingo, 30 de março de 2008

Querer

Quero a cadência esquizofrênica das horas,
Que separam o condenado da aplicação da sentença final.

O brilho dos olhos dos movidos por paixões,
Mas só por aquelas necessárias à própria existência.

A coragem estúpida dos mártires...
Seu sangue regando as flores do meu quintal.

O sol impetuoso, que costuma vir depois da chuva.
Seu ardor ferindo as peles mais sensíveis.

O rubor nas faces daqueles,
A quem ainda resta algum pudor.

O choro mais agudo e os sorrisos mais amáveis.

As meias verdades todas juntas novamente,
Par a par, após milagrosa intervenção do caráter.

Um poema, que de tão verossímil,
Possa ser vivido,
Com todas as suas metáforas feitas realidade.

Meus mortos todos ressurretos,
Abandonando o relicário da mortalha das lembranças,
Avançando calmamente em minha direção, com passos seguros.
Trazendo nas mãos os manuscritos dos poemas, que lhes dediquei,
E nos lábios, seu recitar alegre.

A inconstância da existência nômade,
O habitar muitas almas...

A sede de justiça saciada,
Pelas muitas águas da igualdade,
Saboreadas em taças do mais fino cristal,
Onde até o brindar é cauteloso.

A miséria feita abundância,
Nos pratos transbordantes da fome.
E o sono, que costuma vir sempre depois de tê-la saciado.

Os sonhos, absurdamente bons,
Que costumam povoar as mentes dos que não devem.

Não dever, nem ao menos cogitar dever,
Seja em espécie, dignidade ou satisfações.

Satisfazer-se com a poesia,
Que ela, de tão inútil, me basta!

CRISE

Do relógio, as horas mais arredias,
Da ausência que não tarda em tornar-se desespero,
Da culpa de ser, sem sabê-lo.

Anelos de uma aliança injusta,
Entre o homem e si mesmo.

A esperança, essa borboleta de ares festivos
E asas rotas,
Resistindo cansada, ao alçar vôo e o intervalo do pouso
Nas flores multicoloridas dos sonhos.

Num jardim-labirinto, onde a alma
Se esconde de seu possuidor,
E onde também pássaros negros vêm se abrigar,
Quando a noite faz-se densa demais.

Nas copas das árvores,
Cujos frutos há pouco foram colhidos,
Há seiva abundante de vida.

Nas águas do rio que corta o jardim,
Há um odor pútrido,
Como que de muitos corpos.

A morte e a vida,
Essas eternas interdependentes...

Relações de significação absurda, talvez,
Não fosse isso uma tentativa de poema,
Nem essas, imagens da rua,
Que passivamente, contemplo da minha janela.

quinta-feira, 27 de março de 2008

sUrrEal


Os peixes todos nadando na grama, ao sol quente do inverno
Estátuas falantes,
Por sobre as quais os peixes saltam.

O cinza-cimento delas contrastando com o vermelho do céu,
Risos de crianças ao longe,
Crianças por perto.

Crianças velhas, de mãos enrugadas
E pele tão fina e transparente,
Que as veias se deixam mostrar.

Elas andam por sobre os peixes e a grama,
Tão cautelosamente,
Que sua superfície quase nem lhes nota o mudar de passo.

Ipês de flores azuis,
Vez por outra imergem do lago,
Mas logo voltam às profundidades.

Eles habitam a escuridão absoluta,
E têm por companhia,
Anjos que guardam o lago.

No lugar das asas,
Enormes nadadeiras,
De um violeta estonteante.

quarta-feira, 26 de março de 2008

RELÓGIOS


Nas horas que passeiam
Cheias de tédio pelos relógios nas paredes
Há um ritmo maldito, por repetitivo e inerte,
Cíclico-estático, pré-programado
Por convenções abstratas demais.

Eu repudio os relógios
E toda lógica cruel embutida em seus ponteiros,
Toda sua pontualidade e todo o seu rigor
Em insistentemente marcar, segundo após segundo
O intervalo que nos separa da morte.

Contassem eles nossos segundos todos bem vividos,
Longe das preocupações espaço-temporais,
Esses segundos que se imortalizam na memória,
E eu os veneraria,
Como a mais bela invenção dos homens.

Bradassem eles, ao invés de insistir nesse “tic-tac” medonho...
Bradassem eles nos ouvidos da vida, que precisa ser despertada,
Ao invés de condená-la ao sono induzido por suas convenções...
E eu não odiaria os relógios.

Fossem eles imperceptíveis, por desnecessários,
Ocupando o fundo de gavetas inacessíveis,
De cômodas de quartos iluminados pelo sol,
E cortinas infladas de vida e gozo...
Não fossem eles algozes controladores dos nossos desejos...
Eu os amaria.

Mas tal como se apresentam,
Com essa frieza mórbida,
Esse ritmo previsível, inalterável...
Assim... não me servem de nada,
Nem mesmo para marcar a cadência inexistente de meus versos.

Eu repudio os relógios!

sexta-feira, 14 de março de 2008

TARSILA


O abuso capitalista no preço d'água
O sol que convidava à sombra
E a fila, a fila interminável e injusta.

As expectativas cedendo lugar ao cansaço,
O cansaço, A arte separada de nós por um mar de gente,
Gente pequena e gente grande,
Ansiosa por ver chegar o fim da fila E o início de Tarsila.

Depois de horas sob sol e chuva,
O frescor das salas de Tarsila,
Com seus multicoloridos quadros,
Conservados com o cuidado artificial do ar condicionado.
Quase um choque térmico!

O Abaporu erguendo-se altivo, bem à frente de nossos olhos.
Grande, real, parecia saltar da tela,
na ânsia de matar sua fome de gente.
As cidadezinhas todas,
com sua flora esverdeada e cidadãos pacatos.

Retratos do Brasil, verdes, amarelos, azuis, róseos.
E todos os seus inúmeros bichos antropofágicos,
surgindo do verde, assustando os mais desavisados...

A longa espera parece ter valido a pena:
Encontramos Tarsila em cada uma das telas,
Nos reencontramos com o Brasil.

sábado, 23 de fevereiro de 2008