quarta-feira, 28 de maio de 2008

À margem


Luzes fluidas percorrendo as águas,
Azuis, alaranjadas
São postes e suas lâmpadas.

Tremulando, parecem vivas e mágicas,
Contudo, incapazes de atender aos meus desejos.

Da outra margem, vêm ruídos esparsos
De conversas e copos e alguma música.
Eles sugerem alegria.

Os rostos nas mesas
E perambulando entre os carros, também.

Há multidão de rostos e carros
Que, com seus faróis acesos
Entretêm meus olhos,
Num movimento quase que hipnótico.

Contemplo essa cena toda, de longe,
Da outra margem,
A margem silenciosa,
Quase deserta, quase irreal.

Sempre gostei mais desse lado do lago...

Do lado de cá,
A gente é mais verdadeiro.

segunda-feira, 26 de maio de 2008


"Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias."
(Clarice Lispector)

sábado, 24 de maio de 2008

Necessidade

Sei que a luz não é propícia,
Nem o local,
Nem minhas pálpebras e mãos e cérebro...

Mas escrevo poemas antes de dormir,
Talvez com a intenção de encontrar neles
Repouso e aquietar minha alma.
Quanta falsidade!

Bem sei que, ao invés disso,
Eles costumam tirar-me o sono!

Indecible


Noite passada
Sonhei com uma palavra,
Acordei sorrindo.

Estranha palavra,
Tão estranha, que não sei pronunciá-la.
Palavra melindrosa,
Não se me mostrou por completo.

Palavra indizível,
Sem face.

Logo eu que gosto de olhar nos olhos das palavras,
Assim como faço com as pessoas,
A fim de adivinhar-lhes as intenções primeiras,
Escondidas sob o tênue véu das aparências...
Me decepcionei.

Não, não chegeuei a fitá-la,
Essa palavra misteriosa e arredia,
Não sei nem ao menos dizer-lhe a cor.

Sim, vejo cores nas palavras,
E peso e altura,
E o que dizer-lhe então da voz?

Tudo quanto meus ouvidos entorpecidos puderam captar
Era algo entre o grave e o melodioso.

Agradou-me ouvi-la,
Essa palavra que fala,
Sem mostrar a face.

Amanheci na louca tentativa de lembrar-me de suas formas,
Letras, sílabas...
Esforço vão!

Sonhei palavra indizível,
Singular, rara.

Dessas que, quando pronunciadas,
Enchem de vida todos os recantos da boca.
Palavra mágica,
Que me trouxe à lembrança trapos de felicidade e esperança,
Algum conforto, alívio, um quê de inocência,
Cuidado e amor despretensioso.

Talvez por isso,
E apesar de sua incógnita manifestação,
Tenha me restado uma única certeza:
Essa palavra,
Que agora passo a idolatrar,
Feito um nome divino,
Sem incorrer no pecado de maculá-lo, pronunciando-o,
É substantivo próprio.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Idas e voltas II


Ponto de ônibus, espera, mp4.
Pernas cruzadas, all star violeta, olhares curiosos, desdém.
Ao lado do ponto, uma banca de jornal,
A única da cidade.

Vento, vento forte,
Tanto que fez um de seus exemplares voar,
E que belo vôo fez,
Até que, exausto repousou lentamente sobre o chão de terra batida.

Foi aqui que pensei:
Vou pegá-lo e devolvê-lo à dona.

Pensei... tarde demais,
Antes que me levantasse,
O distinto senhor, que ocupava assento próximo ao meu, levantou-se,
Recolheu as folhas do periódico, ajeitando-as delicadamente,
E, para minha surpresa, começou a lê-las.

Entendi que passara então, a possui-las.
Decepção. Ainda lançara um olhar risonho em minha direção,
Como que tornando-me sua cúmplice... Eu era?

Voltei a concentrar-me na canção,
Um novo personagem entra em cena,
Procurava fones de ouvido, ali não havia para vender.
Começou a falar ao celular,
Minha indiscrição e curiosidade vorazes
Captaram toda a conversa,
Enquanto que minha sensibilidade deteve-se em sua parte final:
- Bênção, mãe!

Achei bonito.
Lembrei-me do modo como sempre me despeço da minha:
- Adiós!
Ao que ela responde:
- Vai com Deus e cuidado!
Às vezes retruco:
- Cuidado com o que, mãe?
("Viver nem não é muito perigoso?")

Não deixa de ser uma bênção.

E a música de novo interrompida,
Agora pela chegada do ônibus.

Novamente paisagens sucedendo-se na janela,
A solidão e a promessa de Sebastian.
Muitos anseios, pouca poesia.

Sigo viagem,
Alguém já disse que a vida é a estrada.
Sebastian ainda grita em meus ouvidos,
Eu o acompanho em pensamento,
Nota por nota, até onde posso alcançar.

E a vida segue com a estrada,
As duas se confundem,
A vida é só mesmice.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

IDAS E VOLTAS


Rock pesado pra acalmar, disfarçar a ansiedade, e quarenta minutos de ônibus até o trabalho. Quarenta minutos de Sebastian Bach e algumas paisagens rotineiras. Sete da manhã, muito sono e nenhuma vontade de encarar a burocracia do sistema educacional.

Volume máximo, a intenção é abafar o ronco ensurdecedor do transporte público, que faz inúmeras paradas ao longo da Fernão Dias. E eu me pergunto, quando atento para esse nome: ele merecia tal homenagem? Não importa, a vida segue junto com o ônibus. Na minha cabeça num ritmo mais veloz, acompanhando a bateria.

Penso nas obrigações do trabalho e no trabalho que isso dá. Penso que é em vão, então, desisto de pensar nisso e me concentro na paisagem. Não havia notado uma árvore, acredito que centenária, enorme, parecendo definir o adjetivo frondosa. Ela sempre esteve ali, à beira da estrada, mas só hoje meu olhar perdido a notara.

Quantas imagens mais meu olhar haveria ignorado? Quantas pessoas, estando elas à margem ou não do meu caminho? Isso me sugere perda. A letra da música que ouço também. E repito elas várias vezes ao longo da estrada.

Me apetece a idéia de ouvir Sebastian gritando aos meus ouvidos: “I will be right there by your side”. Soa como um consolo. Estou sozinha com meus devaneios. É só mais um dia como outro qualquer, igual a muitos que a ele ainda seguirão... ou não.

Quando desisto de ouvir Sebastian, (já o havia ouvido na mesma canção três ou quatro vezes) ouço rumores de conversa. O assunto: política, e me fere os ouvidos o clichê maldito: “Ele rouba, mas faz. E o outro que rouba e não faz nada!”

Volto pra música, agora quase chegando ao meu destino. As imagens vistas da janela aprecem sempre mais bonitas que quando vistas de perto. Talvez seja esse o trunfo da distância. Me sinto distante daquilo que almejo. Sinto saudades daquilo que ainda nem provei.

Talvez eu seja mesmo uma pessoa muito estranha. Ou é o mundo que está assim. Ou mesmo as duas coisas. O fato é que enxergo além da estrada, do ônibus e do valor da passagem, enxergo dor no semblante das pessoas à sua margem. Observo as folhagens empoeiradas e reconheço nesse pó minha própria essência. Estou sempre à margem.

A volta não difere muito da ida, a não ser pelo acréscimo de alguns personagens: um nenê, a quem oferto um sorriso afável, e me retribui, como somos os nenês sabem fazer, oleiros, nesse trabalho pesado e desvalorizado, com pó até a alma, velhos que acenam contentes, cumprimentando o motorista, crianças imundas e felizes brincando nos quintais, onde as roupas tremulam ao vento e compõem uma cena belíssima, em função de seu multicolorido.

Volto a ouvir “By your side”, agora, ansiosa por chegar em casa e esquecer os devaneios todos que a paisagem me provocara.

Já deixei a estrada, contudo, continuo à margem. E meus devaneios ainda me perseguem.



terça-feira, 13 de maio de 2008

O cavaleiro

Ela chegou sorrateira, como de costume, e com seu manto negro, tornou tudo em sua volta luto. Esse corcel indomável, cujo tempo do galope não se conhece, nem se determina, mas que à sua própria hora chega para todos, sem exceção.

Inevitável, ainda incompreensível, morte.

Quando essa indesejada visita chega e se aloja em nossos lares, é difícil não sentir o odor pútrido de sua presença. É difícil recepcioná-la em nossas salas, é quase impossível não salgar seu café com nossas mais sentidas lágrimas.

E sobra então, apenas aquilo que chamamos de lembrança, que é diferente da saudade, por ser essa última a mais aguda das dores, como o desejo insuportável de tornar a lembrança viva de novo.

Mas, infelizmente é mesmo com a morte que aprendemos sobre a vida, por mais contraditório que isso pareça ser.

Aprendemos principalmente com aqueles que se vão, deixando para trás um rastro de felicidade e plenitude. Aprendemos apenas com aqueles que souberam viver, aproveitando esta dádiva ao máximo. Está certo que na maioria das vezes são incompreendidos, criticados... quase sempre por quem encontra na rigidez hipócrita dos deveres sociais, desculpas para não gozar a vida intensamente.

Isso, é claro, não ameniza a dor da partida, muito pelo contrário, a acentua ainda mais, afinal, pessoas assim são raras.

Delas nos restará sempre a lembrança quase infantil das muitas molecagens, do pouco compromisso, da nenhuma seriedade, da irresponsabilidade, com que tanto sonhamos, da inconseqüência, que temos nos negado, da vida, que temos nos negado a viver, em função das muitas obrigações, que nos impuseram algum dia...

E morreremos todos nós, sem nunca sequer termos vivido. Morreremos e ao nosso velório alguns poucos “amigos” estarão presentes, mais uma vez, apenas por conveniência social. Porque nem amigos verdadeiros, durante todo o curso de nossa existência, tivemos tempo de conquistar. Já os “inconseqüentes”, em quantos corações deixaram as marcas da saudade sincera, da devoção genuína, do amor, conquistado aos risos...

Lamentemos a morte, isso não é proibido, mas aprendamos com ela um pouco mais da vida, que ela se extingue facilmente, inesperadamente, num canto qualquer, no meio do mato, tendo por testemunhas apenas o azul infinito do céu e seu criador, Deus. E ainda que demorem por dar por nossa ausência ou simples demora para retornar, Ele vela por nós em silêncio, porque infinita como o céu é a sua misericórdia.

E a morte é só esse corcel alucinado, em cuja sela vai montado cavaleiro de mira certeira.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

LIMÃO


É a um azedume horrendo que se reduz nossa existência. Essa afirmação assim crua, impiedosa poderia reduzir alguns fortes às lágrimas, no entanto, ela já não causa em nenhum de nós, pobres proletariados disfarçados de burgueses, nenhuma reação mais incontida. São tempos de torpor e a necessidade de lucro e a velocidade do algoz impedem quaisquer paradas para reflexões sentimentalóides.

A vida se repete e se anula, ressurgindo e aniquilando-se em erros contínuos. Lugar interessante para observá-la é o ponto de ônibus. Sim, ônibus, essa palavra nobre de origem latina. Foi lá, num ponto de ônibus que, cansada, maldizendo a demora e o preço da passagem, presenciei uma cena incomum.

Ele vinha como sempre vagarosamente, cabisbaixo, o boné descorado enterrado na cabeça alva, as muitas marcas implacáveis do tempo tomando-lhe o semblante cansado, do qual os dois grandes olhos azuis saltavam incrivelmente belos, vivazes, incompatíveis com o resto do rosto, incomparavelmente joviais.

Arcado, limpando num lenço bege a face, toda vez que a tosse intermitente lhe constrangia, ele seguia desviando ora de multidões, ora de crianças, ora de cães, que desamparados têm por lar a estação e por inimigo feroz a sarna. Ele parecia gostar deles, na verdade tratava-se de um sentimento recíproco, vistas as muitas balançadas de cauda que estes lha davam, como que saudando-o.

Ele, saudava a vida no seu sentido mais amplo, e por isso mesmo, autêntico. Ele, o velho vendedor de sorvetes parecia compreendê-la em seu grandioso mistério.

O cliente era também idoso, e conforme aproximavam-se o carrinho e seu condutor, esforçava-se procurando por moedas no bolso largo das calças amassadas pela espera. Mas o esforço não foi em vão, ele finalmente as encontrou, e num gesto rápido estendeu-as na palma da mão suja e enrugada, a pele fina feito renda, as veias grossas, roxas avolumando-se nela, e fez seu pedido.

Ele queria, ele adorava sorvete de limão, desde sua mocidade este era seu favorito.

Nosso nobre vendedor também num gesto rápido, rotineiro, quase macanizado por anos e anos de reptição, entregou-lhe a iguaria.
Espantado, meio que constrangido, o cliente disse:

- Não, eu não tenho todo o dinheiro. Lembrara-se de ler na placa empoeirada afixada no carrinho o preço da mercadoria: cinqüenta centavos. Quarenta era tudo o que ele possuía.

Imagine o leitor a cena, que a esta última se seguiu. Ferozmente avançando contra o cliente, nosso velho toma-lhe o sorvete da mão, deixando-lhe como consolo um frio "sinto muito".

É, mas não foi assim que as coisas se sucederam naquele dia. Ao contrário do que possam imaginar muitos e até mesmo desejar outros, num sorriso autêntico, os olhos azuis ainda mais azuis, iluminados por alguma estranha luz, que a cobertura da estação não pudera filtrar, o sorveteiro, contrariando a primeira sentença deste relato, disse com sua voz enrouquecida pelo fumo:

Não é por causa de dez centavos que o senhor não vai provar o meu sorvete.

Note-se que enfatizou durante a fala os dez centavos, e usou de rara polidez quando referiu-se ao cliente por senhor.

Feliz, como todo aquele que, liberto de toda e qualquer mediocridade ou sentimento egoísta segue sua vida ou o pouco que ainda lhe resta, sem presunções, atitudes viciosas, grandes cargos, encargos, ou falsidades, sujo nas vestes, das quais os botões desprendiam-se enquanto caminhava lentamente, o mesmo corpo arcado, os mesmos sapatos gastos, a alma sempre renovada, ele seguia não sei para onde. O sol vespertino o acompanhando feito cão sarnento, os cães espreguiçando-se sob seus raios. A vida veloz e maldita passando-lhe por sob as vistas cansadas, de quem já assistira a tantas atrocidades, de quem talvez muito já tivesse chorado.

Sessenta e cinco anos (ele deixara escapar durante a conversa), de uma existência lutada, sofrida, porque é isto que se faz nesse mundo: sofrer. Era o dia de seu aniversário, e seria utópico demais dizer que ao chegar em casa, familiares o estariam esperando à mesa repleta de comida e festa.

Ele seguiu, a esquina me impediu de o seguir acompanhando, já que a vida é palco de desencontros. A vida lhe parece querer fugir dos pulmões, a vida logo o abandonará, feito os cães vadios que, interesseiros só o acompanham enquanto ele lhes dá o que comer. A vida resume-se a essa cena.

A vida tem o sabor doce, amargo, azedo do limão.

domingo, 11 de maio de 2008

"Que tempos são esses, em que é quase um delito se falar de coisas inocentes"
Brecht

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Metrópole

Queria ser a cidade,
Provocando a eterna ilusão,
De que seus transeuntes a possuem,
Quando, na verdade, é ela quem os possui e manipula.

Ter em minhas veias o tráfego insano da cidade,
Sentir seu ritmo alucinado
Borbulhar meu sangue.

Ter nos ouvidos os seus inúmeros falares,
Com todos os seus sotaques e armadilhas,
Sussurros, senhas e gritos de horror.

Na pele, as marcas da cidade,
Uma poluição visual sob a forma de tatuagem.
A violência permanente dos anúncios mais indecorosos,
Ferindo-me a derme.

Nos olhos, o multicolorido de sua miscigenação.

Nos cabelos, o pó da cidade,
Essa sua rudeza e hostilidade,
Que insitem em chamar por outros nomes.

Nas mãos, o controle absoluto
Sobre aqueles que passam,
Sem saber que ficam
Impregnados em mim.

Nos pés, muitos descaminhos,
A pressa, a urgência!
Há pressa e urgência na cidade.

Na alma, o vazio enorme
Gerado pela constatação óbvia:
A de estar só em meio à multidão,
Com uma única ressalva consoladora:
Eles 'pensam' me possuir...

domingo, 4 de maio de 2008

Olhos feios


Hoje me aconteceu algo estranho
Alguém que me conhece há mais de dez anos, me disse:
- Que lindos seus olhos!
Surpresa, sem graça, agradeci,
Mas segui pensando, tentando traçar a lógica daquele elogio:
Eles não são sempre os mesmos?
Não, hoje estavam tristes...
Talvez por isso, eles brilhassem mais...
O verde de sempre sofrera uma mutação.

De tudo, de toda essa divagação esdrúxula,
Sobrou apenas uma certeza:
Quero, preciso viver com olhos feios!

quinta-feira, 1 de maio de 2008

CANÇÃO DA SAÍDA


Se não tens o que comer
como pretendes defender-te
é preciso transformar
todo o estado
até que tenhas o que comer
e então serás teu próprio convidado.

Quando não houver trabalho para ti
como terás de defender-te
é preciso transformar
todo o estado
até que sejas teu próprio empregador.
e então haverá trabalho para ti

se riem de tua fraqueza
como pretendes defender-te?
deves unir-te aos fracos.
e marcharem todos unidos.
então será uma grande força
e ninguém rirá.

BERTOLD BRECHT