segunda-feira, 31 de março de 2008

"Se alguém te perguntar o que quiseste dizer com um poema, pergunta-lhe o que Deus quis dizer com este mundo..."
(Mario Quintana)



domingo, 30 de março de 2008

Querer

Quero a cadência esquizofrênica das horas,
Que separam o condenado da aplicação da sentença final.

O brilho dos olhos dos movidos por paixões,
Mas só por aquelas necessárias à própria existência.

A coragem estúpida dos mártires...
Seu sangue regando as flores do meu quintal.

O sol impetuoso, que costuma vir depois da chuva.
Seu ardor ferindo as peles mais sensíveis.

O rubor nas faces daqueles,
A quem ainda resta algum pudor.

O choro mais agudo e os sorrisos mais amáveis.

As meias verdades todas juntas novamente,
Par a par, após milagrosa intervenção do caráter.

Um poema, que de tão verossímil,
Possa ser vivido,
Com todas as suas metáforas feitas realidade.

Meus mortos todos ressurretos,
Abandonando o relicário da mortalha das lembranças,
Avançando calmamente em minha direção, com passos seguros.
Trazendo nas mãos os manuscritos dos poemas, que lhes dediquei,
E nos lábios, seu recitar alegre.

A inconstância da existência nômade,
O habitar muitas almas...

A sede de justiça saciada,
Pelas muitas águas da igualdade,
Saboreadas em taças do mais fino cristal,
Onde até o brindar é cauteloso.

A miséria feita abundância,
Nos pratos transbordantes da fome.
E o sono, que costuma vir sempre depois de tê-la saciado.

Os sonhos, absurdamente bons,
Que costumam povoar as mentes dos que não devem.

Não dever, nem ao menos cogitar dever,
Seja em espécie, dignidade ou satisfações.

Satisfazer-se com a poesia,
Que ela, de tão inútil, me basta!

CRISE

Do relógio, as horas mais arredias,
Da ausência que não tarda em tornar-se desespero,
Da culpa de ser, sem sabê-lo.

Anelos de uma aliança injusta,
Entre o homem e si mesmo.

A esperança, essa borboleta de ares festivos
E asas rotas,
Resistindo cansada, ao alçar vôo e o intervalo do pouso
Nas flores multicoloridas dos sonhos.

Num jardim-labirinto, onde a alma
Se esconde de seu possuidor,
E onde também pássaros negros vêm se abrigar,
Quando a noite faz-se densa demais.

Nas copas das árvores,
Cujos frutos há pouco foram colhidos,
Há seiva abundante de vida.

Nas águas do rio que corta o jardim,
Há um odor pútrido,
Como que de muitos corpos.

A morte e a vida,
Essas eternas interdependentes...

Relações de significação absurda, talvez,
Não fosse isso uma tentativa de poema,
Nem essas, imagens da rua,
Que passivamente, contemplo da minha janela.

quinta-feira, 27 de março de 2008

sUrrEal


Os peixes todos nadando na grama, ao sol quente do inverno
Estátuas falantes,
Por sobre as quais os peixes saltam.

O cinza-cimento delas contrastando com o vermelho do céu,
Risos de crianças ao longe,
Crianças por perto.

Crianças velhas, de mãos enrugadas
E pele tão fina e transparente,
Que as veias se deixam mostrar.

Elas andam por sobre os peixes e a grama,
Tão cautelosamente,
Que sua superfície quase nem lhes nota o mudar de passo.

Ipês de flores azuis,
Vez por outra imergem do lago,
Mas logo voltam às profundidades.

Eles habitam a escuridão absoluta,
E têm por companhia,
Anjos que guardam o lago.

No lugar das asas,
Enormes nadadeiras,
De um violeta estonteante.

quarta-feira, 26 de março de 2008

RELÓGIOS


Nas horas que passeiam
Cheias de tédio pelos relógios nas paredes
Há um ritmo maldito, por repetitivo e inerte,
Cíclico-estático, pré-programado
Por convenções abstratas demais.

Eu repudio os relógios
E toda lógica cruel embutida em seus ponteiros,
Toda sua pontualidade e todo o seu rigor
Em insistentemente marcar, segundo após segundo
O intervalo que nos separa da morte.

Contassem eles nossos segundos todos bem vividos,
Longe das preocupações espaço-temporais,
Esses segundos que se imortalizam na memória,
E eu os veneraria,
Como a mais bela invenção dos homens.

Bradassem eles, ao invés de insistir nesse “tic-tac” medonho...
Bradassem eles nos ouvidos da vida, que precisa ser despertada,
Ao invés de condená-la ao sono induzido por suas convenções...
E eu não odiaria os relógios.

Fossem eles imperceptíveis, por desnecessários,
Ocupando o fundo de gavetas inacessíveis,
De cômodas de quartos iluminados pelo sol,
E cortinas infladas de vida e gozo...
Não fossem eles algozes controladores dos nossos desejos...
Eu os amaria.

Mas tal como se apresentam,
Com essa frieza mórbida,
Esse ritmo previsível, inalterável...
Assim... não me servem de nada,
Nem mesmo para marcar a cadência inexistente de meus versos.

Eu repudio os relógios!

sexta-feira, 14 de março de 2008

TARSILA


O abuso capitalista no preço d'água
O sol que convidava à sombra
E a fila, a fila interminável e injusta.

As expectativas cedendo lugar ao cansaço,
O cansaço, A arte separada de nós por um mar de gente,
Gente pequena e gente grande,
Ansiosa por ver chegar o fim da fila E o início de Tarsila.

Depois de horas sob sol e chuva,
O frescor das salas de Tarsila,
Com seus multicoloridos quadros,
Conservados com o cuidado artificial do ar condicionado.
Quase um choque térmico!

O Abaporu erguendo-se altivo, bem à frente de nossos olhos.
Grande, real, parecia saltar da tela,
na ânsia de matar sua fome de gente.
As cidadezinhas todas,
com sua flora esverdeada e cidadãos pacatos.

Retratos do Brasil, verdes, amarelos, azuis, róseos.
E todos os seus inúmeros bichos antropofágicos,
surgindo do verde, assustando os mais desavisados...

A longa espera parece ter valido a pena:
Encontramos Tarsila em cada uma das telas,
Nos reencontramos com o Brasil.