domingo, 12 de outubro de 2008

NOITE


Havia ainda no ar uma aura de poesia e inquietação deixada pela exibição dos curtas, parte da programação do Cardápio Underground. Caminhava em direção à praça central, em passos adolescentes, o vento impetuoso contra o rosto, all star nos pés, e a sensação de que o mundo ainda me pertencia, com toda sua poesia e mazelas. Havia um certo poder em reconhecer essa verdade.

Entre uma conversa esparsa e outra, meus pensamentos me conduziam a reflexões interessantes, havia, milagrosamente retomado essa minha faculdade, e sentia-me viva novamente. Talvez a sensação cortante do frio (havia saído de casa sem agasalho) contribuísse para potencializar todas essas sensações. Estava viva, eu e meus devaneios todos, até bem pouco tempo adormecidos, agora, despertos novamente.

O caminho já conhecido parecia ganhar também novos ares, novos eram os velhos pés que se deixavam conduzir por ele. E seguíamos, eu, meus pensamentos, alguns amigos e a noite que se estendia no céu feito lona de circo pobre, remendada de estrelas. O frio passando pelos vãos do remendo inútil.

Quatorze graus, era o que o termômetro da praça marcava solene. Minha particular sensação térmica beirava os quatro. Pausa pra um cachorro quente, estrategicamente localizado em frente ao antigo cinema. E como ainda me dói o acréscimo dessa palavra “antigo”... Porque ela soa vazia, melancólica, quase fúnebre. Estranha a sensação de ver aquele prédio desprovido de significado. Um esqueleto apenas daquilo que um dia representou. Quase como a impressão que deixa um teatro vazio depois de uma apresentação calorosa. Resta sempre muito vazio e alguns questionamentos... Ainda mais porque acabara de assistir a um curta, em que seu antigo proprietário falava, nitidamente emocionado sobre a perda...

Conversas esparsas, e uma em especial. Estávamos em roda, planejando ir embora, quando uma figura aproximou-se. Um hippie, com aquela leveza que só os hippies têm, aquele ar despreocupado e ao mesmo tempo grave, quando citando “problemas”. Trazia nas mãos alguns colares e nos lábios uma vontade imensa de convencer-nos a comprá-los. Prosa interessante a do homem, que olhava nos olhos, e falava e cantava Raul ali, em frente ao antigo cinema e a barraquinha de cachorro quente. De uma sinceridade vivaz, impressionante em dias de hipocrisia como os nossos. Justificou a necessidade da venda, utilizando-a e convenceu. Havia nele, pude notar, uma tristeza camuflada pelo descaso pelas coisas graves e quaisquer regulamentos sociais, havia a urgência de viver confrontada pela dor de existir.

Em mim, havia ainda e agora mais pungente, a poesia despertada por meio do programa cultural e pela presença inusitada do tal senhor, distinto senhor, o hippie, de quem não soubemos nem mesmo o nome.

Detalhe menor, insignificante, diante da urgência da vida diante das investidas da morte...

E a noite, agora lona ao vento, Ventania, o céu rasgado anunciando tempestades de poesia e vida e morte.

Um comentário:

Caio Tadeu de Moraes disse...

Nuss.. essa noite ainda está fresca na minha mente, meio adormecida, mas voltou da hibernação bem vivida depois dessa narrativa agradável e metricamente calculada..

Você tem uma memória fotográfica e foi bem cuidadosa para com os detalhes..

Para mim aquele hippie não passava de um alcoolatra sem perspectiva de vida; mais ainda bem que alguém viu o outro lado dele, né?

Valew a crônica de qualidade aee Raquel... Dá um toque quando sair a próxima produção, estou verdadeiramente ansioso...


Ficou muito bom mesmo; faça um favor as almas errantes que caminham neste mundo e nunca pare de escrever!!


Abraço de ovelha!!