terça-feira, 1 de janeiro de 2008

DEUS LHES PAGUE!

Não sei ao certo de onde surgiu esta expressão. Não faço idéia de quem tenha sido o culpado por delegar a Deus mais uma tarefa, a de recompensar, dar paga aos favores de alguém. O fato é que a ouvimos diariamente e com as mais diversas finalidades.

Sexta-feira, 04 de maio de 2007, estava eu a caminho de uma agência bancária para efetuar o pagamento de uma conta... a caminho, porque fui logo barrada na porta eletrônica, que misteriosamente detectou um metal em minha bolsa. O que seria? Celular? – perguntou o guarda do outro lado do vidro. Não, havia esquecido em casa. – Chaves? – outra negativa.

Qual seria a próxima pergunta? Sim, ela veio. – Calculadora? Ah, agora sim! E lá fui eu procurar no meio de tanta tranqueira minha pobre, honestíssima calculadora, que causara quase que um interrogatório policial. Pronto, passagem liberada.

Subo as escadas que conduzem aos caixas. Melhor, nem termino de subir, porque a fila termina nelas. À frente, depois de tantas cabeças já quentes de esperar, vislumbro os caixas, são dois. Os funcionários? O funcionário, apenas um. Por um segundo esqueci-me da minha pouca paciência para filas e tentei colocar-me no lugar dele. Ele, sozinho, atendendo a uma fila quilométrica de usuários reclamões. E o pior é que eles tinham razão, dia de pagamento de benefício do INSS e um funcionário para dar conta.

Por falar em conta, a minha já estava até amassada a essa altura...

Fila, seja de qualquer tipo é sempre entediante, mas contraditoriamente divertida. Não sei se isso acontece só comigo, mas observo muito, e por isso mesmo acabo encontrando com o que me distrair. Nessa fila, por exemplo, tinha um cara que parecia político às vésperas da eleição, falava com todo mundo, cumprimentava todo mundo; em contrapartida, havia um sujeitinho que se limitava a olhar para quem conhecia e depois rapidamente desviar o olhar, fingindo estar distraído. Reclamações, essas ouvia-se pra todo lado. Da demora, do descaso, da não existência de um aparelho de televisão para entreter, do valor irrisório do benefício, da incerteza crudelíssima com relação ao dia do pagamento, de gente que paga conta pro colega do fim da fila...

Engraçado, as pessoas ainda conseguem rir de suas próprias desgraças, habituadas que estão a serem vítimas do descaso das mais diversas instituições, incluindo as bancárias. Houve até quem citasse a lei que rege o tempo de espera nas filas de bancos. Sujeito informado. Esperou até ser atendido, o que aconteceu, mais ou menos uma hora e vinte minutos depois de ter chegado ao banco.

Você não deve estar entendendo o porquê da escolha desse título, não é? Pois bem, de repente, escuto um: - Dá licença, eu preciso passar, sou diabético e não posso ficar na fila. Vim justamente pra receber o auxílio saúde. Frase, que se repetiu ao longo do emaranhado da fila, até ser ouvida também pelo atendente, que temendo nossa reação, explicava:

- Senhor, noventa e cinco por cento das pessoas que estão na fila, o fazem para receber o auxílio doença. Eu não posso atender o senhor na frente...

Antes que o “senhor” tivesse que argumentar mais, alguém lá do fim da fila, solidário, e apoiado pelo restante de nós, gritou:

- Moço, atende ele logo. Enquanto você fica aí falando, dava pra atender ele!

O moço o atendeu, em dois minutos. Dois minutos a mais, dois a menos...

Quiçá todos os males do mundo fossem estancados em dois minutos, todas as injustiças, todas as formas de descaso, todas as filas...

Como agradecimento, nós ouvimos um sonoro:

- Obrigado, viu gente. Deus lhes pague.

E mais uma vez a dívida humana foi transferida ao divino. Não que aquele homem devesse alguma coisa, muito pelo contrário, não fosse nossa ação, ele teria sido lesado no seu direito, como foram muitos naquele dia, gestantes, deficientes físicos, idosos... Mas o nome de Deus continua ser usado em transferências absurdas... Que Deus lhes pague, sim. Que Deus lhes dê a paga devida, por tanto descaso para com o povo.


“Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer, e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague

Pelo prazer de chorar e pelo "estamos aí"
Pela piada no bar e o futebol pra aplaudir
Um crime pra comentar e um samba pra distrair
Deus lhe pague

Por essa praia, essa saia, pelas mulheres daqui
O amor malfeito depressa, fazer a barba e partir
Pelo domingo que é lindo, novela, missa e gibi
Deus lhe pague

Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair
Deus lhe pague

Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir
Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir
E pelo grito demente que nos ajuda a fugir
Deus lhe pague

Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas-bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague”

(Canção “Deus lhe pague” – Chico Buarque de Holanda)


DEUS LHES PAGUE!

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