segunda-feira, 12 de maio de 2008

LIMÃO


É a um azedume horrendo que se reduz nossa existência. Essa afirmação assim crua, impiedosa poderia reduzir alguns fortes às lágrimas, no entanto, ela já não causa em nenhum de nós, pobres proletariados disfarçados de burgueses, nenhuma reação mais incontida. São tempos de torpor e a necessidade de lucro e a velocidade do algoz impedem quaisquer paradas para reflexões sentimentalóides.

A vida se repete e se anula, ressurgindo e aniquilando-se em erros contínuos. Lugar interessante para observá-la é o ponto de ônibus. Sim, ônibus, essa palavra nobre de origem latina. Foi lá, num ponto de ônibus que, cansada, maldizendo a demora e o preço da passagem, presenciei uma cena incomum.

Ele vinha como sempre vagarosamente, cabisbaixo, o boné descorado enterrado na cabeça alva, as muitas marcas implacáveis do tempo tomando-lhe o semblante cansado, do qual os dois grandes olhos azuis saltavam incrivelmente belos, vivazes, incompatíveis com o resto do rosto, incomparavelmente joviais.

Arcado, limpando num lenço bege a face, toda vez que a tosse intermitente lhe constrangia, ele seguia desviando ora de multidões, ora de crianças, ora de cães, que desamparados têm por lar a estação e por inimigo feroz a sarna. Ele parecia gostar deles, na verdade tratava-se de um sentimento recíproco, vistas as muitas balançadas de cauda que estes lha davam, como que saudando-o.

Ele, saudava a vida no seu sentido mais amplo, e por isso mesmo, autêntico. Ele, o velho vendedor de sorvetes parecia compreendê-la em seu grandioso mistério.

O cliente era também idoso, e conforme aproximavam-se o carrinho e seu condutor, esforçava-se procurando por moedas no bolso largo das calças amassadas pela espera. Mas o esforço não foi em vão, ele finalmente as encontrou, e num gesto rápido estendeu-as na palma da mão suja e enrugada, a pele fina feito renda, as veias grossas, roxas avolumando-se nela, e fez seu pedido.

Ele queria, ele adorava sorvete de limão, desde sua mocidade este era seu favorito.

Nosso nobre vendedor também num gesto rápido, rotineiro, quase macanizado por anos e anos de reptição, entregou-lhe a iguaria.
Espantado, meio que constrangido, o cliente disse:

- Não, eu não tenho todo o dinheiro. Lembrara-se de ler na placa empoeirada afixada no carrinho o preço da mercadoria: cinqüenta centavos. Quarenta era tudo o que ele possuía.

Imagine o leitor a cena, que a esta última se seguiu. Ferozmente avançando contra o cliente, nosso velho toma-lhe o sorvete da mão, deixando-lhe como consolo um frio "sinto muito".

É, mas não foi assim que as coisas se sucederam naquele dia. Ao contrário do que possam imaginar muitos e até mesmo desejar outros, num sorriso autêntico, os olhos azuis ainda mais azuis, iluminados por alguma estranha luz, que a cobertura da estação não pudera filtrar, o sorveteiro, contrariando a primeira sentença deste relato, disse com sua voz enrouquecida pelo fumo:

Não é por causa de dez centavos que o senhor não vai provar o meu sorvete.

Note-se que enfatizou durante a fala os dez centavos, e usou de rara polidez quando referiu-se ao cliente por senhor.

Feliz, como todo aquele que, liberto de toda e qualquer mediocridade ou sentimento egoísta segue sua vida ou o pouco que ainda lhe resta, sem presunções, atitudes viciosas, grandes cargos, encargos, ou falsidades, sujo nas vestes, das quais os botões desprendiam-se enquanto caminhava lentamente, o mesmo corpo arcado, os mesmos sapatos gastos, a alma sempre renovada, ele seguia não sei para onde. O sol vespertino o acompanhando feito cão sarnento, os cães espreguiçando-se sob seus raios. A vida veloz e maldita passando-lhe por sob as vistas cansadas, de quem já assistira a tantas atrocidades, de quem talvez muito já tivesse chorado.

Sessenta e cinco anos (ele deixara escapar durante a conversa), de uma existência lutada, sofrida, porque é isto que se faz nesse mundo: sofrer. Era o dia de seu aniversário, e seria utópico demais dizer que ao chegar em casa, familiares o estariam esperando à mesa repleta de comida e festa.

Ele seguiu, a esquina me impediu de o seguir acompanhando, já que a vida é palco de desencontros. A vida lhe parece querer fugir dos pulmões, a vida logo o abandonará, feito os cães vadios que, interesseiros só o acompanham enquanto ele lhes dá o que comer. A vida resume-se a essa cena.

A vida tem o sabor doce, amargo, azedo do limão.

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